Quem é o vazio e quem é o octaedro? A compartimentalização não é clara, mas “Vazio e o Octaedro nasce num momento em que o silêncio ocupa todos os espaços que outrora eram ocupados por pessoas e ideias”, como se lê no encarte online do álbum. A fim de suprimirem este vácuo, Gianni Narduzzi (contrabaixo) e Josué Santos (saxofone tenor), os dois compositores deste trabalho, decidiram por mãos à obra e construir algo em conjunto. Para isso, foram buscar superiores recursos provindos das novas gerações de músicos com actividade em Portugal. Por pouco que não se chamaram “Vazio e o Tetraedro”: começaram por ser um quinteto que incluía Hristo Goleminov (saxofone tenor e flauta), Afonso Silva (saxofone alto) e João Cardita (bateria). Contudo, não satisfeitos com a bidimensionalidade rítmica e melódica a que a ausência de instrumentos harmónicos os forçava, optaram por dar uma profundidade extra à matriz musical do grupo, elevando-o a noneto com um quarteto de cordas formado por Beatriz Rola (violino), Alice Abreu (violino), Sara Farinha (viola) e Manuel Ferrão (violoncelo). Uma escolha inteligente e acertada que em muito enriqueceu as cores e dinâmicas deste álbum epónimo lançado pelo Carimbo Porta-Jazz.

As regras da aritmética, no entanto, não permitem que a soma do vazio a um número o incremente por uma unidade. Entender como 4+0=5 e 8+0=9 pode parecer um quebra-cabeças, e, estando evidentemente errado, apenas podemos concluir que a operação que une as faces deste poliedro não se resume a uma mera soma de elementos diagonais. Existem aqui termos cruzados que tornam interdependentes mesmo as faces não adjacentes. “Tanto o vazio como o octaedro só fazem sentido quando, não só coexistem, mas também cooperam”, o que explica com clareza os acoplamentos presentes na aritmética da formação. Porventura seja esta consistência estrutural que explica o modo discreto e elegante como o noneto interpreta os temas. Não há necessidade de excessos, extravagâncias ou postiço. Imagine-se música de várias camadas, tocada de forma funcional sem perda de intenção e vigor: cada músico com o seu papel bem definido em prol de um todo maior, atitude reveladora de um claro sinal de maturidade musical. Na era do TikTok em que se impõe quem fala mais alto, não há como desgostar de uma proposta em contracorrente com os princípios do status quo.

Roda-se o disco, e os sopros emergem na dianteira. Em “s’Böötli Fahrt Nume dur d’Nacht”, o cenário é cinematográfico: tela a ser desenhada a traços suaves e delicados, com as cordas a pintarem os sombreados harmónicos que preenchem o resto da tela. A atmosfera é de consonância, e as imagens desenhas simétricas e proporcionais. Narduzzi e Cardina avançam a narrativa com serenidade, a qual se presta a ocasionais trocas de papéis que enviam os sopros para a retaguarda e dão protagonismo às cordas que se sobrepõem com exclamações, em pizzicato. Por entre solos dos saxofones, o noneto avança para “Please Insert Here” com um ostinato de contrabaixo rapidamente acompanhado pelas restantes cordas e sopros. Gradualmente é formado um contexto de intriga que se contrapõem ao bucolismo do tema anterior e que desemboca num rio de várias correntes: no leito e em regime de turbulência baixa, as cordas dobram-se sobre si mesmas, emergindo à tona individualmente, numa passagem de bastão que dá vez a uma sequência de lamentos melódicos e termina com o grupo num torvelinho. “Lieu Common” volta à passada lenta e alavanca todos os recursos da formação: as cordas em perfeito sincronismo a darem amplitude ao tecido musical e incisão nos momentos de transição; os sopros a discursarem e a imiscuírem-se nas harmonias subjacentes. Não é uma dinâmica invulgar, mas não há dúvida que é executada irrepreensivelmente e com detalhe. Talvez por saber do excelente ensemble que tinha à sua disposição, “Big Sur” - composição de Narduzzi que originalmente fez parte de Dharma Bums, disco passado em revista aqui no Beats for Peeps – volta a ser reinterpretada pelos Vazio e o Octaedro. Segue-se uma bela versão de “Balada do Outono” de José Afonso, arranjada por Josué Santos, que também lhe empresta a voz. Para terminar, eleva-se o humor em “Arte Que Sana”, tema que abre espaço para vários solos, entre os quais do contrabaixo e da bateria que aqui ganham espaço para mostrarem os seus talentos.

Baseando-se num notável esforço colectivo que interpreta 6 composições robustas, os Vazio e o Octaedro criaram um álbum melífluo, impossível de não se gostar, e que pede por várias e atentas rodagens.