No ano em que se celebra o centenário do aniversário de Jean-Louis Lebris de Kérouac – amplamente conhecido pela versão inglesa de seu nome, Jack Kerouac, essa mesma que o celebrizou enquanto escritor – revisita-se a obra e pondera-se o impacto, escrevem-se artigos sobre, e sucedem-se as homenagens àquele que foi o mais importante escritor da geração beatnik. Burroughs, Ginsberg ou Ferlinghetti. Cassady, Carr ou Huncke. Dêem-se as voltas que se derem, desfaçam-se os nós que se desfizerem, nenhum destes apelidos ressoa tanto nos ouvidos do grande público como o de Kerouac. Sem ele a geração beat nunca teria provavelmente deixado tão indelével mácula no tecido cultural das décadas seguintes, ficando para sempre relegada ao fundo de uma gaveta, quiçá estudada por académicos curiosos e com fetiches por fenómenos obscuros da contra-cultura dos anos 50, principalmente por aqueles que estiveram imbuídos em espírito transgressor e ímpeto criativo. O que seriam os hippies sem os beatniks? O que seriamos nós, humanos do pré-metaverso, sem os conceitos de liberdade que tiveram como catalisador os movimentos sociais desta época? Numa era de religiosidade instagram, o que seria a nossa metafísica sem a revolução psicadélica dos anos 60, que tão profundamente motiva os actuais conceitos de espiritualidade?

Mas falar de Kerouac e não falar de jazz seria como falar de Cossery e não falar de ócio. Kerouac era a personificação literária do jazz. A sua escrita era música. A sua música era vida, transportada em todo esplendor para o papel através de uma incansável caneta movida a aventura e anfetaminas. Era branco, mas isso pouco interessava. Nutria-se do bebop tal qual os negros o faziam. A sua arte dele dependia como de pão para a boca. A materialização do seu pensamento ora era feita em staccato, ora em jeito de pura deambulação espontânea, como quem improvisa sobre a vida ou vive a improvisar. O seu verbo era Parker e Gillespie. Era artífice-supremo do tal derramamento sobre o qual escreveu Caio Fernando Abreu. E, somando a tudo isto, o seu espírito permanece, ainda hoje, presente no ideário de qualquer movimento almejante ao mais ínfimo grau de rebeldia. Acresce que qualquer adolescente com o mínimo de curiosidade pela vida, ânsia de mundo e desejo de liberdade no mínimo folheou os livros de Kerouac. Porventura, até, deliciou-se com as frenéticas viagens de Sal Paradise e Dean Moriarty em “On The Road”. Os mais interessados, talvez tenham mesmo mergulhado nas leituras transcendentais de “Dharma Bums”, nas mirabolantes peripécias descritas em “The Subterraneans”, ou no decrépito e decadente romance de “Tristessa”. Quem sabe, ainda, se também não leram “Big Sur”, deparando-se, com desalento, com uma realidade cruel e implacável que prontamente esmorece qualquer de ponta de deslumbramento por um estilo de vida desmedido, nómada e boémio. A noite chegou e a alvorada ainda ia a meio. O mundo não foi feito para os famintos e sedentos.

Serviu este preâmbulo de introdução a “Dharma Bums”, um dos últimos lançamentos do Carimbo Porta-Jazz, que vem com assinatura do (contra)baixista e compositor Gianni Narduzzi, músico suíço com fortes ligações à cena jazz nacional. É-nos dito em notas de apresentação que este álbum começou a desenhar-se em 2019, sendo uma “homenagem ao homónimo livro de Jack Kerouac, que tem como temática central a viagem física e interior e a busca de um lugar”. A formação nuclear deste disco é constituída pelo próprio Narduzzi, no contrabaixo e composições, Gonçalo Ribeiro, na bateria, Joaquim Festas, na guitarra, Afonso Silva, no saxofone alto, e ainda Hugo Caldeira, no trombone. A complementar este quinteto - “inspirado nos quintetos clássicos de bebop e hardbop, com a diferença que ao piano substitui-se a guitarra, bem menos comum na tradição jazzística” - encontram-se, ainda, o pianista Miguel Meirinhos (“Canção do Vinhal” e “Big Sur”), trompetista Pedro Jerónimo (“Big Sur”), tenorista Pedro Matos (“Big Sur”) e baritonista Rafael Gomes (“Big Sur”), que se prestam a participações pontuais. Todos eles são jovens músicos, alguns acabados de sair de licenciaturas em jazz nos respectivos instrumentos. Apesar da idade, ouvimos o disco e somos surpreendidos por uma maturidade e criatividade invulgares. A juventude está certa. Como não poderia estar? Tão certa como Felix Mendelssohn na sua adolescência, Yves Klein quando realizou as suas ideias monotonais e monocromáticas, ou Fernanda Trías quando redigiu “La Azotea”. Não se trata de inocência e inexperiência, antes de ousadia e confiança. É talento e visão que não se coíbe de florescer.

Voltando ao texto de apoio deste disco, nele são referenciados Wayne Shorter e Kurt Rosenwinkel como inspirações, além de um “vasto campo de influências sonoras”, campo esse que também se estende a obras “literárias e cinematográficas”. A música deste “Dharma Bums”, contudo, transpõe em várias frentes os territórios musicais definidos por estes músicos. É certo que toda a escola do jazz encontra-se aqui bem à vista. Este é, no entanto, um jazz poroso, dialogante e pensado. Por exemplo, logo em “Graffitti”, o tema de abertura, escutam-se ritmos de hip-hop com o sax e trombone em diálogo colorido a harmonias de guitarra. Seguem-se bons solos de Afonso Silva e Joaquim Festas, num leito groovy mantido pela secção rítmica. O quinteto sabe, no entanto, contrapor à descontração e urbanidade de “Graffitti” música de maior formalidade e rigor estilísticos, que prontamente se ouve em “Züri”. “Turner Point” recompensa uma audição atenta às melodias e jogos rítmicos. Já “Canção do Vinhal” transporta o ouvinte para geografias cool jazz, em parte retidas em “Covelo”, tema em que Gianni Narduzzi e Hugo Caldeira têm espaço para mostrar os seus sólidos dotes enquanto instrumentistas. Por fim, “Big Sur”, um tema tocado em noneto, segue uma trajectória ascendente, terminando em atmosfera efusiva, celebratória, que subverte o desencanto sentido no original de Kerouac. Um dos melhores temas do disco, que coloca um assertivo ponto final num trabalho em que todos estão de parabéns: os músicos pelas impecáveis interpretações das pautas e pelas improvisações bem conseguidas; Narduzzi pelas composições e liderança do projecto. Quatro estrelas sólidas.


P. S. — Texto origalmente publicado em jazz.pt.