Assim como a expressão “Portugal é Lisboa e o resto é paisagem” é injusta e, verdade seja dita, encontra-se cada vez mais em desuso, uma forçada adaptação deste dito à realidade das terras inglesas seria a óbvia “Inglaterra é Londres e o resto é paisagem”. Com efeito, proferir-se ou acreditar-se em tal afirmação nada revelaria senão pura e total ingenuidade, pois tamanha seria a obscenidade de ignorar, num plano cultural, a importância histórica de cidades como Bristol, local que assistiu em primeira mão ao surgimento de movimentos como o trip-hop e o drum and bass; consolidou géneros como o jungle, o dub, o reggae e o dubstep; e viu nascer bandas como Massive Attack e Portishead. Ademais, exceptuando a óbvia e irrefutável hegemonia da capital inglesa, poderíamos afirmar que Bristol é, porventura, o segundo maior centro cultural de Inglaterra, e, certamente, a capital cultural do oeste do Reino Unido. No entanto, e apesar da forte tradição musical associada à cidade, a cena jazz do país tem sido, até ao momento, dominada pelos grupos e artistas que saem de Londres, que actualmente gozam de merecido reconhecimento um pouco por todo o mundo, definindo tendências não só no campo musical, mas também com participação activa em áreas tão distintas como a moda ou o activismo social. É, então, neste desequilíbrio de reconhecimento e projecção - metaforicamente algo como as assimetrias presentes entre David e Golias -, que a Worm Discs se encarrega de provar que não poderíamos estar mais enganados, mostrando-nos numa sensacional compilação intitulada New Horizons: A Bristol Jazz Sound o melhor que o jazz bristoliano tem para oferecer - tudo o que posso adiantar é que, ironicamente, depois da sua audição, David torna-se um pouco mais Golias, e Golias um pouco mais David. 

A Worm Discs é um selo criado pelos promotores bristolianos do Worm Disco Club, um colectivo de três elemento formado por Nathan, Jackson and Jake. Desde a sua fundação, em 2014, o grupo tem estado não só envolvido em vários projectos de curadoria de concertos de grupos de jazz, assim como na organização e alinhamento do palco “The Wormhole” no festival de Glastonbury. A transição do colectivo das vertentes de curadoria e promoção para o lançamento de registos discográficos foi um passo natural, dado que os Worm Disco Club sempre sentiram que a cena de jazz de Bristol “merecia ser ouvida”. Desta forma, desde 2019 que tinham vindo a cogitar o lançamento desta compilação que serve como montra para a nova onda jazz da cidade, e que pretende incitar à exploração do talento emergente que dela emana. A gravação dos temas consumou-se em Novembro e Dezembro de 2019, em sessões nos estúdios da Canyon Sound onde foi dada total liberdade criativa aos artistas. Sonicamente o jazz deste New Horizons é claramente de fusão, longe da raiz mais tradicional ou smooth do género, do mesmo modo que se afasta dos seus domínios mais livre e experimentais. É, sim, um jazz que se mescla com várias vertentes de rock e da electrónica - acima de tudo, é música profundamente cativante, original, sincera, e - não menos importante - está longe de ser uma cópia da sonoridade jazzística de Londres. 

São vários os grupos contemplados nesta compilação que, apesar das singularidades e especificidades de cada um, sentimos que pertencem ao mesmo território sónico. Aliás, facilmente este álbum se ouve com a suavidade e coerência que caracteriza discos de um único grupo ou autor. Começando pelos Waldo’s Gift – banda formado por Alun Elliott-Williams (guitarra e efeitos), Harry Stoneham (baixo) e James Vines (bateria e electrónica) -, este é um trio com uma sonoridade onde o math e post-rock são mesclados com grooves jazzy e cheios de energia. Contribuem para esta compilação com as faixas “Bergson” e “Jabba”, juntando-se também ao saxofonista Lyrebird (Dave Sanders) para o tema “I Ain’t Buying”. Já os Run Logan Run, duo vencedor do Montreux Jazz Talent, são formados por Andrew Hayes (saxofone e electrónica) e Matt Brown (bateria e percussão). Apresentam duas faixas - “3.3 Encke Ups” e “A Sea of Apathy and Indifference” - onde exploram atmosferas futuristas à lá Comet is Coming com um toque de espiritualidade messiânica. A propósito, uma interessante visão sobre a cena bristoliana é nos dada por Hayes, que esclarece que “Bristol sempre teve a sua própria sonoridade, mas tem havido uma nova colheita de jovens músicos que revitalizou a cena e aumentou as suas expectativas sobre o que a música jazz significa.”. Ademais, o septeto Snazzback - formado por Alfie Grive (trompete), Dave Sanders (saxofone), Eli Jitsuto (guitarra), Richard Allen (baixo), Hal Sutherland (teclas), Myke Vince (percussão) e Chris Langton (bateria) - juntou-se à doce e maravilhosa voz de Lucy Bowles (China Bowls) para os temas “Grook” e “Yum Yum”, faixas que derretem e deliciam o coração de qualquer ouvinte. Este ensemble de sete elementos é também o autor de “Flump”, um tema aqui reimaginado por Pete Cunningham (Ishmael Ensemble) numa groovy e relaxada interpretação. Há ainda espaço para dois interlúdios: o sincopado e polirrítmico “Virtual Sex - interlude” de BaDaBoom!, e o meditativo e etéreo “Owl” de Lyrebird. Por fim, Elliot-Williams, o guitarrista dos Waldo’s Gift, dá corpo à faixa final, “Bourdain”, uma despedida recheada de melancolia e saudosismo. 

New Horizons: A Bristol Jazz Sound é uma jornada fantástica, altamente recomendada, e que serve como gatilho para uma exploração mais aprofundada da cena jazzística de Bristol. É interessante reparar que a sonoridade bristoliana difere, notoriamente, da londrina, apresentando, por exemplo, muito menos influência de hip-hop e afro-beat. Além disso, podemos afirmar sem rodeios nem constrangimentos que estamos perante o We Out Here desta cena emergente. O desafio, agora, será tentar projectar a cena além-fronteiras, pois é evidente que esta compilação merece e tem potencial para chegar a mais ouvintes - espero que assim aconteça e aqui fica o meu contributo na sua divulgação.