
Ao longo da última semana, tenho-me debruçado sobre vários trabalhos da UnderPool, editora independente do nosso país vizinho, sediada em Barcelona, apenas para me deparar com um leque de artistas e propostas musicais surpreendentes, de qualidade evidente e superior, e que me têm aprazido deveras o ouvido. Em várias ocasiões, tive já a oportunidade de abordar neste espaço diferentes abordagens à linguagem do jazz e da música improvisada vindas da Catalunha, todas elas, na sua maioria, de carácter predominantemente vanguardista e experimental. Em contraponto a estas vertentes mais livres, a música da UnderPool é de faceta mais tradicional, sem que essa característica seja aqui usada com o mínimo de conotação pejorativa. Aliás, é música que facilmente agradará a um maior espectro de ouvintes do que a que vem da cena avant garde, e com toda a justificação e mérito, pois estamos perante músicos aos quais devemos prestar atenção e que fazem muito bom jazz.
Falemos então de Allegoria, álbum da autoria do trio liderado pelo pianista Txema Riera - ao qual pertencem Dani Pérez (guitarra) e Roger Gutiérrez (bateria) -, que aqui se encontra aumentado pelo sax tenor de Santi de la Rubia. A narrativa deste trabalho é de uma beleza fora de série, encadeando uma série de temas altamente melodiosos e harmoniosos. Não há dissonâncias desconcertantes ou atonalidades, mas, sim, música estruturada, composta com intencionalidade e com um forte sentido estético em mente, que também abre espaço para improvisações que surgem nos temas quase sorrateiramente: sem que demos por isso, estamos a escutar uma improvisação vinda do Hammond B-3 de Rieira ou do tenor de de la Rubia. E tudo isso com a suavidade alegórica de uma narrativa que trespassa vários estados de alma, várias emoções, sem que mesmo os momentos mais coléricos ou impetuosos – se assim lhes podemos chamar – resvalem para o caos ou a desordem. A expressão deste trio+1 é, assim, eloquente, cuidada com a semântica e a sintaxe, e, acima de tudo, melodiosa, harmoniosa e muita bem tocada.
Allegoria abre com “La Mirada I”, tema em que, à vez, os elementos do grupo vão surgindo e juntando-se aos anteriores, num crescente musical que se assemelha ao desenrolar de uma suave alvorada matinal. “Alila” evolui num compasso de 3/4, comandado pelo saxofone de de la Rubia, que postula a linha melódica sobre a qual o trio constrói e divaga. Há espaço para interessantes improvisações: primeiro um eléctrico solo de Pérez, seguido de uma investida de Riera no Hammond. A propósito da forma, esta faixa é, aliás, um esclarecedor exemplo da abordagem que o grupo adopta ao longo do disco, que em termos gerais segue uma estrutura de “head-solo-head”. “Olivia”, por exemplo, encaixa-se também nesta matriz, apesar de menos temperamental. “Petra”, numa espécie de bop contemporâneo, retém a estrutura do género no que toca à parte rítmica, mas moderniza alguns segmentos com uma estética renovada. Ademais, se em “Petra” sentimos a alma de Parker e Gillespie, em “Everest” avançamos uma década para escutar algo com laivos de hard bop: o walking bass está lá, vindo do Hammond de Riera, que subtilmente também adorna o tema com o calor das suas teclas; Gutiérrez remete-nos Art Blakey na bateria; e Pérez e de la Rubia são os radicais livres do grupo, deslocando-se criativamente e com imaginação. “Àrtic” pilota-nos por entre os meandros de uma introspectiva jornada em que discursos individuais se complementam com segundas e terceiras vozes, soando a incontornáveis overtones que adensam e intensificam a atmosfera, e que atribuem nuances e harmonizam com carácter e personalidade este frio passeio. “El Seu Rei”, como “Petra”, tem, novamente, fortes reminiscências de bebop. Percebemos a escola que está por detrás destes músicos, mas também a sua irreverência, no sentido em que estes não se limitam a uma aproximação escolástica a estas sonoridades fundamentais, transpondo-as para uma realidade em que fruta já demasiado amadurecida torna-se novamente fresca. Por fim, “La Mirada II” termina o álbum com uma reinvenção do tema de abertura, esta que é uma clara alusão à _quasi-_circularidade da jornada pela qual o grupo enverdou, visto que aterrou num local idêntico, mas não igual, ao ponto de partida, sinal de que, de alguma forma, a sua natureza, ainda que infinitesimalmente, se alterou no decorrer desta senda.
Ao longo de oito temas, o trio+1 de Txema Rieira conduz-nos através de uma jornada moody, vibrante e de feição contemporânea, captando a atenção do ouvinte numa sucessiva progressão estados emocionais, cada um abordado de forma estruturada e congruente. Um disco que traz consigo paz, plenitude e uma singular capacidade de nos harmonizar espírito.