
É de colorações e tonalidades outonais que os Ombak Trio revestem este Through Eons to Now, um interessante disco de estreia que vem pressagiar como promissora a colaboração entre os residentes em Itália Stefano Giust (bateria e pratos) e Giovanni Maier (violoncelo), e o esloveno Cene Resnik (saxofones tenor e soprano). A música que o trio toca é free jazz puro e duro, livremente improvisado e com traços de ensaio literário que nunca se define totalmente, talvez devido ao facto de muita da investigação sónica deste disco ser dedicada a momentos transitórios: se num segundo sentimos vibrações melancólicas, no seguinte somos atingidos por revoltadas e enérgicas divagações que nos afastam de qualquer estado contemplativo, incitando-nos à acção e à descoberta. Ditas alternâncias entre distintos humores são ainda exacerbadas pelo tocar de cada um dos elementos: Resnik assume-se como o elemento melódico do grupo, portador de uma sonoridade quente e expressiva, com um vocabulário profundamente jazzístico, mas que também sabe apalpar terrenos não-idiomáticos; o violencelo de Maier é frio, impessoal, ora tocado em arco ora com os dedos, muitas vezes soando e fazendo-se passar por contrabaixo; a percussão de Giust é curiosa pela inquietude que expressa, traduzida numa exaustiva busca pelo acompanhamento necessário, encontrando-se sempre presente, mas assumindo amiúde um papel secundário, preterindo o protagonismo pela criações de atmosferas e ambientes que permitem que os seus colegas pintem sobre a paisagem por si criada.
São seis as faixas que constituem Through Eons to Now. No tema de abertura, “Rapidly Changing Contexts”, começamos por escutar um monólogo de Resnik - acompanhado, em plano de fundo, pelos outros dois elementos -, que, aos poucos, se vai entrelaçando com o tocar de Maier até se tornar mesmo num diálogo em consonância, que, logo depois, se separar novamente, desta vez em dois monólogos independentes mas paralelos. Nesta história de encontros e desencontros, Giust produz desde pontuais e espaçados sons metálicos e lancinantes, a tempestuosas divagações pelos elementos secos da bateria, esporadicamente humidificados por certas batidas nos pratos de choque. “A Wrong Way to Be Right” vê Maier assumir a dianteira de arco na mão, sendo este tema também confirmação de que o papel de Giust transcende o de pura manutenção do rigor rítmico do trio. Aliás, são, inclusive, mais frequentes os momentos em que o percussionista se desprende desta “obrigação” metronómica para se tornar num elemento activo do diálogo, comunicando através do timbre de cada um dos elementos percussivos do seu kit. Além disso, Resnik mantém um registo semelhante ao do tema anterior, quente e assertivo, quase sempre melódico, talvez ligeiramente mais experimental nalguns segmentos. “Practice of a Principle” assenta no mesmo domínio das faixas anteriores: é um tema frio, no qual as texturas e diatribes de Giust e Maier são contrapostas por um ordenado e comunicativo Resnik. “Watching Under The Carpet” remete-nos para geografias misteriosas, mas calmantes: Maier aborda o violencelo de forma interessante, fazendo-o soar a contrabaixo; já o fraseado de Resnik é íntimo, atingindo-nos com a proximidade de quem nos comunica algo ao ouvido. Em “Consequences of a Doubt” somos consumidos pelas texturas de Giust (que explora colarações graves, surrealistas) e experimentações de Maier, sendo que juntos embarcam numa jornada sinistra, quase distópica, visitando lugares desconcertantes e pouco familiares. Como sempre, muita da coerência é imposta por Resnik, com um fraseado mais próximo de algo que já possamos ter ouvido num outro passado do que os outros dois músicos. Por fim, para terminar o álbum, “End of a Western Criteria”. E, se havíamos, até aqui, colocado Resnik (maioritariamente) no plano da consonância melódica, ora que o saxofonista se liberta do cânone mais tradicional para se entregar, por fim, a topologias não-idiomáticas, conseguindo, deste modo, aliar-se de forma homogénea à percussão e ao violoncelo. Apesar desta predominante homogenia, sente-se alguma relutância por parte do saxofonista em abandonar por completo a abordagem anterior. Assim o tema desenvolve-se nesta luta entre o conforto e a aventura, nunca se estabelecendo totalmente em nenhum dos dois lados - um excelente exemplo dos regimes transitórios que o trio vai explorando ao longo do disco.
Through Eons to Now é um disco que se distingue pela quase subversiva obstinação de Resnik de não se entregar à experimentação pura, característica que dá a este álbum um toque especial, tornando-o num excelente híbrido que explora quer paisagens mapeadas quer regiões intransponíveis. As prestações de Giust e Maier são igualmente meritórias e de considerar, bastante mais exploratórias e idiomaticamente desprendidas, formando um rebuscado e bem conseguido tecido experimental. Transportando-nos da imensurável eternidade até ao presente, eis um disco que cai que nem uma luva nesta época outonal.