
No jazz, o trio de piano é porventura a formação em que o rácio entre o potencial musical e o número de instrumentistas é mais elevado. Desengane-se quem, dada a simplicidade inerente a esta tipologia, extrapola essa mesma simpleza para o plano musical. As possibilidades que podem brotar de um trio de piano são praticamente infinitas, razão pela qual esta formação foi celebrada tanto por alguns dos maiores nomes do jazz dos anos 60 e 70 - pense-se, por serem incontornáveis, nos lendários trios de Bill Evans ou Keith Jarrett - como por alguns dos mais interessantes compositores e pianistas da atualidade - por exemplo, Marcin Wasilewski, que tem editado álbuns extraordinários pela etiqueta de Manfred Eicher. Por território nacional, também o saudoso Bernardo Sassetti, juntamente com Alexandre Frazão e Carlos Barretto, enalteceu soberanamente a riqueza latente a esta formação com um jeito muitíssimo português projetado em absoluto sobre o piano. Recentemente, pudemos saborear este trio a tocar em topo de forma graças ao lançamento de Culturgest 2007, álbum editado pela Clean Feed Records.
A abundância de exemplos nacionais e internacionais que se destacam como trios de piano está, pois, profundamente correlacionada com a abundância de ritmo, melodia e harmonia que esta tipologia encapsula no seu interior, encapsulação essa que se encontra estruturada em camadas de complexidade crescente, sem direito a descontinuidades: na base, a bateria, o fundamento de tudo, ritmo que é tempo; na camada seguinte, o contrabaixo, a possibilidade melódica que não esquece a sua natureza percussiva; na camada superior, o piano, o abraço que totaliza esta tríade, a pluripotência harmónica, rítmica e melódica. Nas ciências, a Navalha de Ockham estabelece que de entre as várias teorias explicativas de um mesmo conjunto de factos, a mais simples é a que ganha. Cortem-se os excessos e retenha-se o essencial, sem perda de capacidade nem significado. O simples é belo, ainda que o belo nem sempre seja simples. Também o trio de piano vence por ser a formação simples mais capaz. E é bela, pois simples. Simples, pois reduz-se ao essencial sem sacrifícios estéticos.
Há praticamente 10 anos, em Dezembro de 2013, o pianista e compositor portuense Pedro Neves lançava AUSENTE, dando, assim, o pontapé de saída para uma discografia - toda ela com selo Carimbo Porta-Jazz - como líder de banda. Esta obra, tecida sempre em trio, conheceu, em Outubro de 2022, o seu quarto capítulo, Hindrances, um avanço editado um ano após termos ouvido Pedro Neves em D com os PUZZLE 3, em trio, claro está, ao lado de João Paulo Rosado e Miguel Sampaio. Não será, portanto, surpreendente afirmar a excelência do pianista a tocar em formações desta tipologia, mas o interesse na sua música reside cada vez mais na forma como esta se tem refinado com o tempo. Pedro Neves é cada vez mais porta-estandarte, com toda a responsabilidade que este papel representativo acarreta, de um pianismo jazzístico de temperamento português. Os traços singularizantes da portugalidade encontram-se, em grau variável, plasmados na sua música com naturalidade e elegância. É, portanto, evidente que Pedro Neves compõe sobre o que é e sobre o que conhece, assumindo em pleno a sua identidade, preterindo qualquer tipo de pretensiosidade estilística. Mas, como sempre, é como se escreve e não sobre o que se escreve, pelo que este “pianismo português” é mel para ouvido atento. Há nele uma certa nostalgia que pensa o mundo a olhar para o mar. Os frequentes ostinatos representam essa ruminação, consciente do colete-de-forças, dos obstáculos, dos tais hindrances que impedem o Homem de ultrapassar a sua condição. Profundamente dramático mas também profundamente belo. Imagine-se um romantismo à Camilo Castelo Branco versão século XXI. Simão e Teresa. Ou outros nomes quaisquer. ChatGPT e o fim do mundo. Guerra e aquecimento global. Desemprego, precariedade. O mar, novamente; e depois a terra. Um café e uma esplanada. Pedaço de esperança, mas sempre com a dose certa de sobriedade - efusividade desmedida é para os que a podem ter.
No entanto, para ser-se justo com a riqueza musical deste Hindrances é preciso reconhecer-lhe tantas outras facetas: as tendências contrapontísticas Bachianas (no tema-título, por exemplo); a incorporação de motivos rítmicos e melódicos vindos de um universo folclórico familiar; uma mão direita eloquente e irrequieta, sempre em busca de melodias cativantes; rigor formal composicional que resulta num som redondo e melífluo, esculpido com atenção ao detalhe; composições dinâmicas que desenham arcos narrativos que leem o ouvinte, dando-lhe espaço para respirar quando necessário e limitando-lhe as possibilidades em momentos tensão. E, claro, este romance absorvente e intrigante só é possível graças às sólidas fundações sobre as quais se assenta: a dupla Miguel Ângelo (contrabaixo) e José Marrucho (bateria) surge impecável na interpretação e com uma noção de tempo e espaço imaculadas. Tocam com sensibilidade e subtileza, brilhando nos solos. E se ainda agora falávamos no refinar de uma ideia de música, também obrigatório será reconhecer-lhe a porosidade que a abre aos ares do tempo e que se encontra patente, por exemplo, em “One mile of walking”. Com uma intro a clamar por ser samplada por beatmakers, o trio de Pedro Neves guia-nos por paisagens groovy em que o jazz dá a mão às batidas do hip-hop. Sem obstáculos, mas inspirando-se neles, ora aqui está um álbum que demonstra com distinção toda a validade dos trio de piano no jazz (português!) do presente.