In Igma é um trabalho conceptual de Pedro Melo Alves - criado a propósito do “Jazz no Parque” de 2019 (Fundação Serralves, da curadoria de Rui Eduardo Paes) -, que foi recentemente editado pela Clean Feed Records, editora que se apresenta sempre na vanguarda da música de improvisação. Neste disco, o compositor, baterista e percussionista Melo Alves junta-se às vozes de Aubrey Johnson, Beatriz Nunes e Mariana Dionísio, ao piano de Eve Risser, à guitarra/objectos de Abdul Moîmeme, e ao contra-baixo de Mark Dresser, para formar um ensemble de músicos que dá forma a uma curiosa peça, tão enigmática (enigma) quão iluminadora e estimulante (em referência a ignis, i.e. luz/fogo). De génese abstracta e transcendental, In Igma é uma obra onde confluem elementos de música clássica, contemporânea e experimental, tão bela quanto intrigante, na interface entre uma purificadora catarse e uma aterradora neurose. E se nas notas de apresentação do disco é citado Goethe para descrevê-lo, igualmente o poderíamos fazer através de dois versos de Cruzeiro de Seixas “Pintem uma paisagem dentro de outra/ porque nisso está a verdade.”

As vozes - principais personagens deste enredo - formam um tecido etéreo, sublime, angelical, concomitantemente vestindo-se de encantadoras da Hidra de Lerna e de guardiãs de Cerberus - ora monofónicas na sua consonante solidão, ora homofónicas num perfeito encadeamento, ora separando-se em heterofonias geradoras de tensão e inquietude, ora polifónicas em diálogos independentes, murmúrios imperceptíveis, discussões ortogonais - numa constante dialética, com diferentes níveis de sobreposição e entrelaçamento, como se de forças que exercem distintas influências num mesmo corpo se tratassem. São, portanto, expressões de uma mesma unidade, altamente correlacionadas, complementando-se sem se ocluirem; cada uma condição não só suficiente, mas também necessária para uma mútua existência - o céu e a terra, o bem e o mal, o divino e o secular. O trio de vozes assume, assim, o papel de criador da atmosfera da obra, a qual está suportada numa matriz textural e geométrica da responsabilidade da bateria/percussão, geradora da paisagem através da modulação de súbitas explosões, do ranger de portas de madeira maciça, do ciciar de folhas levemente balançadas pelo vento, da colisão de seixos que rolam arrastados pelo mar, entre tantas outras granularidades que nos evocam intensas sensações e nos remetem para lugares semi-obscuros. O contra-baixo e a guitarra adoptam um papel similar, suportando a criação da paisagem sónica que sustenta a narrativa através das suas vibrações. Já as cores da paisagem são pintadas pelo piano - quiçá mesmo a mais enigmática de todas as peças deste ensemble -, que em pontuais e subtis intervenções define as tonalidades cénicas da obra, interpelando para informar. 

Não sendo um disco fácil, In Igma reúne várias componentes que o tornam uma experiência transcendental: a imprevisibilidade da narrativa; as vozes que formam uma camada que, ora se sobrepõe aos instrumentos, ora neles se funde desaparecendo sem deixar rasto; o ambiente drone mas não-circular que demonstra propósito e intenção; a constante e dinâmica interacção entre os instrumentos que se materializa num domínio abstracto onde é possível navegar; as oscilações entre quietude e tormento - tudo elementos que fazem deste disco um trabalho brilhante.