“O mais importante na música é o ritmo, depois a melodia, e depois a harmonia”, afirmava Art Farmer (Wilmer, 1970). Sem explicação de maior profundidade, mas com toda a sensibilidade e sabedoria que o caracterizavam enquanto pessoa e músico, Farmer intuía que o ritmo é o mais fundamental de todos os elementos musicais. Sem ritmo não há música, ainda que possa haver ritmo sem música. A relação entre música e ritmo não é, portanto, uma de equivalência, mas sim de implicação. O ritmo é a pulsação do real, o batimento do cosmos; é o movimento da vida, decorrente do kronos que a possibilitou; e é também o elemento musical que, quando conjugado com a melodia e a harmonia, estrutura algumas das mais belas obras que a humanidade já alguma vez criou.

Em Som Alvo, trabalho que constitui o primeiro álbum a solo de Nuno Morão, o músico - que também toca em projectos como The Selva, Medusa Unit, Cacto ou Madalena Palmeirim, além de ser director técnico na OSSO - apresenta 7 composições em que explora as potencialidades rítmicas e tímbricas de um kit de percussão formado por 7 membranofones, o qual inclui um djembê, dois timbalões (um deles de chão), um bongó, uma conga, uma darbuka, e um adufe. Encontram-se, portanto, reunidos neste kit instrumentos percussivos que são universalmente utilizados na música independentemente do género musical, assim como instrumentos característicos de certas etnomusicalidades, tanto provenientes de África e da Ásia como da rítmica tradicionalmente portuguesa.

Relativamente ao racional utilizado por Morão na escolha deste conjunto de membranofones, esclareceu-nos o próprio por e-mail que “quis fazer um conjunto de instrumentos de percussão que tivesse uma homogeneidade específica (neste caso, que fossem todos membranofones), mas que ao mesmo tempo preenchesse uma gama tímbrica com alguma extensão: desde o grave profundo do adufe, passando pelos harmónicos do djembê e da conga, pela característica mais baterística dos timbalões, e pelos registos mais agudos e definidos da darbuka e dos bongós.”

A abordagem de Morão a esta viagem percussiva centrou-se numa incursão polirrítmica por geografias tórridas e pulsantes – congruentes com “a quente noite de Agosto” em que a sessão de gravação foi realizada –, em que certos motivos rítmicos foram repetidos, com ligeiras variações de tempo, intensidade e até de forma, em progressão, ora gizando geometrias cromáticas ricas em ressonâncias e angulosidades, ora percorrendo planícies desérticas em que pelo caminho são invocadas tribos e identidades primitivas. Foram por aqui desenhadas trajectórias circulares, tautológicas, fruto de uma prática contínua de progressiva simbiose com o instrumento, que tanto originaram hipnóticas meditações, encantadoras mesmo da mais frívola das mentes, como rituais purgativos impregnados de voodoo e magia negra.

Mas não só Nuno Morão foi viator no acto de gravação deste Som Alvo. O próprio álbum, até assumir a forma final que agora chega até nós, passou por sucessivas etapas de maturação e reinvenção, tendo tido como semente um projecto de 2011, que surgiu “por ocasião de um convite da Granular para apresentar um projecto a solo num ciclo de concertos apresentados na Culturgest.” Foi, então, deste projecto embrionário, que chegou a ser “apresentado algumas vezes” antes de ficar “adormecido durante uns anos”, que surgiu o título Som Alvo: “Na altura, apesar de a paleta de instrumentos e recursos que utilizei ser um pouco mais alargada (para além das percussões, também [utilizei] os field recordings, teclados, sopros, laptop e projecção vídeo de fotografias), Som Alvo, para mim, preenchia algumas expectativas relativamente ao que podia ser o nome do projecto: ‘soava’ em, sugeria uma clareza da prática (‘alvo’ com o duplo sentido de ‘mira’, ‘centro’, mas também significando ‘branco’, ‘nítido’), e tinha ‘mistério’ suficiente para suscitar curiosidade.”

A partir de 2015, Morão voltou a ter “um espaço de trabalho dedicado (uma sala num estúdio de som)” que o permitiu uma imersão intensa e renovada sobre as ideias do projecto electroacústico inicial, que foi então revestido com roupagem integralmente percussiva. Sobre o processo de criação das 7 faixas, esclarece-nos o percussionista que se trataram de “explorações rítmicas e tímbricas” que “foram improvisadas, no sentido da ‘escrita-em-tempo-real’, mas são fruto de um período de experimentação (e de repetição de uma prática musical): ao longo de vários meses, tive aquele ‘kit’ de percussão sempre montado na minha sala, e fui aprofundando a minha relação com ele: nos sons, nos timbres, com usos de batentes diferenciados, ensaiando padrões rítmicos, pensando em formas musicais, enfim, dando espaço ao crescimento do instrumento em mim, e de mim perante o instrumento.”

Ouvintes habituados a música moldada com formas sonoras mais “tradicionais” - i.e., música melodizada e harmonizada - poderão ter dificuldade em transcender na musicalidade aqui presente, que é primeva, primordial. Ainda assim, “Som Alvo” é um álbum que logra atingir em pleno os objectivos a que se propôs, constituindo uma audaz viagem rítmica que combina harmoniosamente com uma tarde a ouvir 2 trabalhos seminais de 2 expoentes da percussão, curiosamente ambos lançados em 1966, viz., “Drums Unlimited” de Max Roach (Atlantic Records) e “Percussion Ensemble” de Milford Graves (ESP-Disk).