Egipto, 1971. Depois de anos a escrever música e poesia inspiradas nos antigos reinos africanos, Sun Ra aterrava finalmente no Cairo, num voo com proveniência da Dinamarca. Acompanhavam-no 21 músicos da sua banda, nesta que era a segunda digressão europeia de Sun Ra and His Astro-Intergalactic-Infinity-Arkestra. Graças às gravações feitas pelo percussionista Thomas “Bugs” Hunter, um dos membros da Arkestra, é possível recordar esta visita do nascido Herman Blount às terras do deus Ra. Pelas comunalidades onomásticas, não será, pois, exercício complicado traçar ligações entre Sun Ra e o Egipto, e muito menos compreender o simbolismo que esta viagem teve na vida e obra do músico.

Do outro lado do mediterrâneo, e passado mais de 50 anos, também Nuno Campos se deixou inspirar pela riqueza desta cultura anciã em Something to believe in. Neste novo avanço, o contrabaixista e compositor ladeia-se pelos jovens músicos Miguel Meirinhos (piano) e Ricardo Coelho (bateria), e pelo experiente tenorista José Pedro Coelho. Foram, aliás, precisamente estes os músicos que, três anos antes, acompanharam Campos em Ta Catarina Ten, o predecessor deste novo registo – terceiro na conta pessoal do contrabaixista, iniciada em 2011 com My Debut For The Ones Close To Me (Fresh Sound New Talent) -, também ele lacrado pelo Carimbo Porta-Jazz.

Não há, no entanto, uma sobreposição óbvia entre a música cósmico-espacial de Sun Ra e o jazz de Nuno Campos, o qual se centra numa abordagem contemporânea à composição inspirada em compositores como “Schoenberg, Bartok, Ravel, Debussy, Ligeti, Messiaen e muitos outros”. Ainda assim, o mesmo Egipto das pirâmides e faraós, do Nilo e do deus Sol; esse mesmo Egipto que agrega em torno de si um grupo variegado de curiosos, investigadores e espiritualistas, os quais espraiam o seu foco de interesse por sobre toda a linha do (pseudo-)conhecimento – das teorias da conspiração à investigação científica –, é tanto a procedência das histórias, mitos e recordações que estimularam Nuno Campos a escrever esta música, como o lugar de peregrinação que acolheu Sun Ra e os membros da sua Arkestra para uma série de performances e sessões de gravação realizadas diretamente na fonte, na bica de um conjunto de crenças e tradições, agora mitológicas, que na sua génese têm como matriz ideias mítico-poéticas manifestamente muito caras tanto ao enviado de Saturno como ao músico portuense.

Ao longo de 8 temas, em Something to believe in, Nuno Campos e o seu quarteto viajam então pelo Cairo e seus arredores através de música plena de dinâmica que atravessa desertos e centros urbanos, revisitando o passado para o transportar para o presente. Abre o álbum “The beginning”, tema ao qual João Pamplona empresta a voz para receitar um texto escrito pelo próprio Campos, o qual estabelece o contexto mitológico subjacente à obra. Fá-lo acompanhado por todo o quarteto, que se movimenta a passo lento, cautelosamente. Piano e saxofone avançam e recuam ciclicamente, em cada iteração expondo um pouco mais a frase melódica subjacente à composição. Já “Ra” é prova-viva do papel destacado que a música de Campos atribui ao contrabaixo, que surge neste álbum amiúde em primeiro plano, em plena utilização das suas capacidades melódicas. Por entre voltas e reviravoltas de José Pedro Coelho, sempre impecavelmente acompanhado e harmonizado pelo piano, abre-se espaço para o primeiro discurso do contrabaixista, ao qual se segue um ruminativo segmento em que Meirinhos conduz o quarteto por desertos repletos de miragens. Atingido o apogeu desta travessia, indicado pelo contrabaixo pulsante e bateria turbulenta, desemboca, por fim, o grupo num oásis de tranquilidade que o acolhe em porto seguro.

Este oásis dá tempo para que em “Anubis”, momento de repouso, o 4tet se deleite com iguarias locais, bafejado por grandes leques feitos de folhas de palmeiras. Escuta-se uma melodia egípcia que vai gradualmente sendo dissolvida: da consonância inicial, com direito a homofonias entre os vários instrumentos, transita-se para um momento de sonho. O contrabaixo de Campos, tocado em arco, adensa a atmosfera e confere-lhe movimento; o saxofone de José Pedro Coelho mantêm-se exploratório mas concentrado, definindo o sentido musical; e a bateria e o piano geram texturas sinuosas. Recuperado o fôlego, em “Shu” o quarteto reemerge revigorado, a tocar jazz contemporâneo, fervilhante e inquisitivo. Sol de pouca dura, pois os ostinatos do piano na retaguarda rapidamente se tornam hipnotizantes, remetendo o grupo para um segmento de improvisação. Lentamente, a letargia desvanece-se e, em ritmo compassado, o contrabaixo lança-se para a linha da frente. Em sentindo ascendente, segue-lhe José Pedro Coelho com uma interpretação notável dos escritos de Campos. O tenorista em topo de forma reaviva a memória do jazz fervilhante que abre o tema, e o grupo por aí segue, fazendo o que de melhor sabe fazer.

Mas como estar num determinado lugar é também estar com todas a memórias que esse lugar despoleta, em “Para Cátia” – aparente divagação -, Nuno Campos agarra novamente no arco para dialogar com pensamentos que ecoam no seu interior. Retomada a viagem, “Nha Toi” e “Osiris and Isis” demonstram ser mais dois belíssimos exemplos do jazz vivaz desta formação de Nuno Campos, capaz de encontrar água mesmo no maior deserto. Conciliando bulício e apaziguamento, este é jazz que mantem sempre acesa a chama da descoberta, aliando rigor formal a ímpetos exploratórios. E são precisamente estes impulsos que voltam a surgir no início do tema de despedida, “Seth”, que termina com o quarteto em ebulição.

Sem recorrer aos lugares-comuns que tanto se associam à cultura egipícia, Something to believe in reúne memórias, paisagens, histórias e mitologias captadas ao longo de uma passagem do Nuno Campos 4tet pelo Cairo. Neste trabalho, o grupo revê estes momentos com distância em relação ao objeto de estudo, mas fá-lo sem nunca desprezar os traços singularizantes daquilo que constituiu a totalidade da sua experiência. O resultado é arte em estado puro: uma pintura musical repleta de estudos de cor, impressões de movimento e jogos de claridade, os quais são inseridos numa estrutura jazzística contemporânea, dinâmica e fulgurosa, que testa os equilíbrios de forças presente nos quartetos tradicionais. O contrabaixo, ao assumir a posição digna que merece ter em todo o jazz, acaba a dignificar o próprio jazz – e todos saímos a ganhar! Para descrentes, ora aqui está música que evangeliza mesmo o maior cético.