
A Mung Music é uma editora sul-coreana, sediada em Seul, focada em lançamentos nos domínios do free jazz e da improvisação livre. Tal como se pode ler no Bandcamp do selo “Mung é uma expressão coreana “멍” traduzida aproximadamente como “espaçamento”, um processo durante o qual a nossa mente consciente recua e permite que a nossa mente subconsciente assumam o controle, muito parecido com o processo que acontece na arte da improvisação.”.
O facto curioso associado ao processo de gravação da editora é o uso de um Tascam 424, um gravador de cassetes de 4 pistas, que confere aos discos um carácter lo-fi, esteticamente bem distante dos prevalentes métodos de gravação de alta-definição modernos. Deste modo, como (orgulhoso) detentor de um dos precursores deste equipamento de gravação, o Tascam 246, fiquei imensamente curioso em explorar os lançamentos desta editora. Assim, e para além desta ligação emocional à sonoridade lo-fi, aliou-se o facto dos meus conhecimentos da cena jazzística e de improvisação sul-coreanos serem bastante escassos, motivos que, no seu conjunto, fizeram com que navegasse com interesse por alguns dos mais recentes lançamentos da Mung Music. Deste modo, foi com espanto, mas com sincero agrado, que pude verificar e concluir que a música de improvisação livre da Coreia do Sul está viva e recomenda-se. Ah! E quase que me esquecia de referir: todos os (bonitos) artworks dos lançamentos da Mung Music são da autoria do seu fundador, Sunjae Lee, também ele músico (saxofonista) e compositor.
Ma-chal é o álbum de estreia do trio electroacústico de improvisação SaaamKiiim, anteriormente conhecido por Sonor Project, um grupo composto por uma formação bastante particular: para além da convencional bateria e percussão, que estão ao comando de Sun Ki Kim, o trio apresenta uma instrumentação onde o tradicional e o moderno se fundem em todo o seu esplendor: se, por um lado, temos Yeji Kim no haegeum, um instrumento cordofónico tradicional da música coreana tocado com arco e que remonta, pelo menos, ao século XII, por outro, temos Dey Kim na electrónica, tecnologia que foi a maior invenção musical do século XX e da qual a democratização alterou por completo a banda sonora deste novo milénio. O registo aqui apresentado surgiu de improvisações guiadas, nas quais foram usados temas e motivos criados em concertos anteriormente realizados pelo trio. Assim, apesar das sequências definidas previamente à gravação serem de difícil identificação ao longo do álbum, já a improvisação e experimentação, essas, são a palavra de ordem.
Tal como referido em notas de apresentação, em Ma-chal é intenção do trio “romper com as três componentes da música - harmonia, melodia e ritmo”. E é exactamente esse tipo de premissa que os SaaamKiiim apresentam neste registo que é, indiscutivelmente, mais uma experiência cénica do que propriamente uma experiência musical. Digamos que a sua audição será mais certeiramente descrita como uma experiência de banda sonora de filme, isto porque sem harmonia, melodia e ritmo, tudo o que nos resta são texturas desconfortáveis, percussão pulsante, electrónica áspera e experimental, granularidades inquietantes, rugosidades arrepiantes. Após esta descrição, o título do álbum (Fricção, ou Ma-chal, em coreano) torna-se mais inteligível: fisicamente podemos imaginar uma situação ideal, sem fricção, que ocorre quando duas superfícies completamente lisas deslizam uma sobre a outra. Ora, claramente, os membros deste ensemble são tudo menos “lisos”, sendo a forma atritada como interagem que despoleta um conjunto único de sensações, específicas de cada tema, aqui expressas como fricções que são modeladas “através do movimento do som e da energia”. No total são 4 as faixas que compõem Ma-chal, cada uma invocando um ambiente específico que é, até certo ponto, definido pelo próprio título: em “Pointy Ma-chal” a electrónica de Dey Kim é lancinante e perfurante, o haegeum de Yeji Kim produz sons animalesco de forma ofegante, e a percussão de Sun Ki Kim complementa a atmosfera com interjeições e onomatopeias; já “Moist Ma-chal” é uma improvisação suave e escorregadia, com sonoridades que nos fazem imaginar todo o tipo de movimentos e interacções com líquidos, e onde escutamos desde gotas a cair a fluxos turbulentos; ademais, em “Creepy Ma-chal“ experienciamos, talvez, a mais sombria e assustadora de todas improvisações: ouvem-se simulações de ecos de vozes perdidas, gritos de desespero e sofrimento, almas penantes que vociferam no purgatório; por fim, é, curiosamente, no último tema, “Ma-chal of Ma-chal of Ma-chal”, que se escutam as únicas reminiscências de musicalidade do disco, com a bateria a assumir um papel mais rítmico e ordenado, a electrónica numa aleatoriedade paradoxalmente mais familiar, e com o haegeum, esse, a não ceder à ortodoxia, continuando alheado na sua senda abstracta e experimental. Devido a estas características, Ma-chal é uma experiência sónica que não será para todos os ouvintes, não deixando, devido a isso, de ser, no entanto, uma inusitada, mas interessante viagem por estranhas e sinistras frequências.