Pensei, mesmo que tenhamos as frases na cabeça, não temos a certeza de as conseguir pôr no papel. As frases metem-nos medo; primeiro, são os pensamentos que nos metem medo, depois são as frases, em seguida temos medo de já não termos as frases na cabeça quando as quisermos escrever. Muitas vezes, anotamos uma frase cedo de mais, outras vezes tomamos nota de outra frase tarde de mais; temos de anotar a frase no momento exato, se não perdemo-la.

Será esta porventura a tirada que, no final de Betão, resume em absoluto a luta interior de Rudolph, um aspirante a musicólogo que procura obsessivamente – ainda que com sucesso limitado - escrever um trabalho sobre Mendelssohn Bartholdy. Quem não se identificar com esta tirada literária de Thomas Bernard, aqui citada na tradução de Maria Olema Malheiro, certamente nunca teve de desenvolver um trabalho de índole criativa, ou simplesmente um trabalho que teve o seu ponto de partida numa dimensão intelectual; nunca teve de passar das ideias à prática e projetar no plano do real as sementes que vivem no abstrato da mente humana. A sobreposição entre as ideias e a sua materialização no concreto, entre a idealização e o seu consumar, nunca é plena. A chave do enigma, esse “segredo” que permite um criador avançar mesmo perante esta tragédia – sim, tragédia, porque abismo ontológico, já que descontinuo entre o que é imaginado possível e o que realmente é - reside, arrisco-me a escrever, em compreender (aceitar…) que a matéria por que são compostos os pensamentos não é exatamente a mesma matéria por que é composta a obra que deles resulta. No século XII, já dissera a escolástica francesa que “de boas intenções está o inferno cheio”, pelo que o passo inicial é indubitavelmente o passo primordial. Mas se a ideia pode ser o acicate de novos acontecimentos, o salto para o desconhecido é a sua força-motriz, o motor que lhes confere momentum e vida própria. 

Nas notas de apresentação de A Invenção da Ficção, primeiro trabalho enquanto líder de banda do guitarrista e compositor Luis Ribeiro, o qual teve como premissa inicial “o momento do primeiro passo”, lê-se: “Num momento nada. No outro tudo. Todas as possibilidades, todas as viagens, todas as versões da realidade. Num momento silêncio. No outro música.” Neste excerto, encontra-se explanada a estrutura teórica geral que fundamenta este disco do músico portuense, trabalho que, de entre as muitas virtudes que possui, uma é precisamente a demonstração da importância de tolerar a incerteza intrínseca ao processo criativo. Aliás, A Invenção da Ficção revela-se como prova-viva de que, quando incorporada e aceite como parte integrante do processo, dita incerteza pode, inclusive, potenciar o ato criativo e resultar em obras de qualidade. 

Além do mais, deixa patente Luis Ribeiro nas notas de apresentação do disco que as dúvidas, quiçá mesmo alguma frustração, também fizeram parte do processo de criação do álbum, caso contrário o músico não teria sido assombrado por questões como: “A primeira nota é a correta? A primeira história é a verdadeira? O primeiro improviso é o justo?” Ainda assim, acrescenta o guitarrista que estas hesitações não se tornaram em barreiras, bloqueios criativos, visto que “[…] se esfumam imediatamente porque as músicas emancipam-se. Crescem rapidamente e fogem do nosso controlo. Um controlo que nunca existe.” A potência criativa, a possibilidade da concretização, a vencer num trabalho cujas composições foram escritas em duas semanas, no início da pandemia.  

A acompanhar Luis Ribeiro em A Invenção da Ficção encontra-se uma formação constituída por 5 músicos que dispensam apresentações: Rui Teixeira (saxofone barítono e clarinete baixo), Hugo Ciríaco (saxofone tenor), Joaquim Rodrigues (piano), Miguel Ângelo (contrabaixo) e Marcos Cavaleiro (bateria). Logo na primeira faixa, “O Negro”, junta-se ainda ao sexteto Gabriela Braga Simões, cantora cuja voz etérea começa por desenhar, em homofonia com o piano, a melodia que enceta o tema, sendo rapidamente aumentada pelos sopros, que surgem com o resto dos músicos. Escutam-se, então, melodias paralelas, harmonizadas entre si, que criam uma estrutura polifónica evocativa de ambientes misteriosos nos quais o suspense, a incerteza e a indecisão imperam. Compassos de transição conduzidos pelos sopros promovem uma diminuição da intriga, e o grupo transita para paisagens musicais mais brandas, pontudas pelo piano suave de Joaquim Rodrigues. Escutam-se novamente compassos de transição, agora envolvendo todo o sexteto, que desembocam num momento em que a guitarra, ligeiramente distorcida, é protagonista. A alternar entre riffs e solos, Luis Ribeiro dá à mão ao jazz-rock, para depois passar o testemunho a Hugo Ciríaco, que arranca um solo maravilhoso do seu tenor, tocando-o a plenos pulmões. Regressa, por fim, o grupo às ideias iniciais do tema, fechando-se assim um ciclo.  

Em “Swingteto” escutamos o sexteto a swingar a toda a velocidade: contrabaixo groovy e melodias cruzadas advindas dos sopros abrem para segmentos de puro bop em que o piano de Joaquim Rodrigues e o barítono de Teixeira são os interlocutores principais. À semelhança da faixa anterior, depois desta revisitação do jazz dos anos 40, 50 e 60 a partir de uma perspetiva contemporânea, que não esquece os blues, regressa novamente o grupo aos motivos musicais iniciais do tema. Segue-se “Triciclo vicioso”, que começa com o piano em atmosferas enigmáticas. Cruzam-se os sopros, a guitarra segura o ostinato do piano, abrindo, assim, espaço para que este se envolva em cascatas melódicas. Novamente sopros cruzados, e mais jazz contemporâneo muito cinematográfico, evocativo de histórias e tramas, aventuras e viagens. Entra depois o grupo em fase de descompressão, tocando a baixo volume padrões e texturas abstratas, para, novamente, a estrutura “head-solo/variations-head” reemergir.

Já em “In”, escuta-se um manto ondulatória formado por drones, do qual pontualmente emergem os sopros, que lança o grupo para um estado de hibernação. Aos poucos, em “Temporal” e “Três metros marcha”, a formação liderada por Luis Ribeiro volta ao jazz contemporâneo cinematográfico que caracteriza grande parte do disco, o qual é muito rico em jogos harmónicos, transições entre paisagens musicais e melodias de encher o ouvido. No tema-título, que encerra este A Invenção da Ficção, confirmamos que estamos perante música que fala por si mesma, criada com o autor num estado de fluxo, a permitir que o mundo, a vida e a criação aconteçam naturalmente. Não se tratou, certamente, de definir as condições iniciais e de deixar o jogo correr; antes, de determinar o sentido e a direção à medida que o rio fluia… e o resultado está à vista: ficção inventada com sucesso.