A incorporação de elementos jazzísticos na música clássica é um fenómeno que, durante o último século, levou à criação de peças notáveis, que de todos são conhecidas (lembremo-nos, por exemplo, de várias obras de Claude Bolling ou das Jazz Suites de Shostakovich). O fenómeno inverso, isto é, a aproximação do jazz à música clássica, tem, principalmente nas últimas décadas, sido uma tendência em expansão, muito devido ao crescente interesse de músicos com formação clássica pelas formas livres do jazz e da improvisação, que a elas se convertem sem nunca perderem contacto com a sua bagagem formativa. Não é, portanto, de estranhar quando aparece um trabalho que se alinha por esta direcção criativa, a qual amiúde resulta, verdade seja dita, em interessantes propostas musicais. Monalisa. Ballads and More, o disco objecto desta recensão, é, pois, um trabalho que se assenta nesta linha musical. Resultado de uma colaboração entre o clarinetista clássico Jürgen Kupke e o pianista de jazz Hannes Zerbe, dois veteranos da músicia alemã que têm colaborado em diversas ocasiões ao longo dos últimos 30 anos, o álbum foi editado pela JazzHausMusik, sendo já o segundo trabalho do duo, sucedendo a Alles hat seine Zeit (2019, JazzHausMusik).

Numa tónica frequentemente baladesca (“PART XVIII”, “Passacaglia für David”, “Monalisa” e “Strange Ballad”), mas também aberta a devaneios por paisagens abstractas e geométricas (“Intermezzo I, II & III”, “Mahlerei” e “Chronos”), o duo de piano e clarinete cria, neste disco, música de câmara baseada em composições escritas que estão sempre abertas à improvisação. Deste modo, apesar da forma “livre” da matriz estrutural subjacente aos temas, estes acabam por maravilhosamente nunca resvalar para o caos ou cacofonia, antes mantendo sempre um elevado sentido melódico, harmónico e rítmico que nos faz esquecer a sua verdadeira génese. Assim, é como se o duo procurasse nestas composições “livres” capturar o absoluto do momento. Não espanta, por isso, que as melodias e propostas criadas revelem sempre intenção, sendo bastante apelativas ao lado emocional, qualquer que seja a direcção deste apelo. O sentido musical aguçado e elevada capacidade comunicação de Kupke e Zerbe são também factores que fazem com que as narrativas criadas nunca sejam lineares. Qualquer que seja o motivo musical apresentado, seguem-se-lhe variações, desconstruções e abstracções que trazem frescura e tornam o álbum numa surpresa a cada instante. Mesmo em termos de dinâmica, apesar de se perceber que Zerbe se assume maioritariamente como criador de telas, pintor de cenários e bases harmónicas, Kupke, que por “limitação” de instrumento é sempre muito mais melodista e discursivo, não deixa, ele mesmo, de impelir o duo para novas geografias sonoras, criando frequentemente instabilidades e dissonâncias que alteram a colaração dos temas, fazendo-os avançar. Num registo com muito humor, é também o clarinetista que resgata da sua bagagem clássica referências intemporais, tal como a menção ao segundo andamento da primeira de Mahler que pode ser escuta em “Mahlerei” - a cereja no topo do bolo que coroa um álbum com muita classe.