Pouco mais de um ano após o lançamento de Vento, o trio formado por José Lencastre (saxofone alto), Hernâni Faustino (baixo eléctrico) e Vasco Furtado (bateria) volta à carga com Forces in Motion, álbum que, tal como o seu antecessor, foi editado pela portuguesa Phonogram Unit, selo discográfico que tem trazido para o mercado algum do melhor free jazz e música improvisada que tem sido criada por músicos nacionais. Uma das características que distingue este Forces in Motion do seu antecessor é o facto de Faustino tocar baixo elétrico e não contrabaixo, o que permite que o trio explore diferente paletes tímbricas e possibilidades sónicas. 

Se já o havia feito em Vento, em Forces in Motion a dupla Lencastre-Faustino assume-se novamente como uma verdadeira força da natureza, apresentando uma química ímpar na cena de free jazz nacional, qual imparável locomotiva de duas carruagens, sempre comunicantes, que dialoga incessantemente para gerar e resolver tensões, as quais são habilidosamente sustentadas pelos ritmos e texturas criados por Vasco Furtado, que forma os carris, o sustento, desta estrutura. São 6 os temas que constituem este trabalho, que foi gravado ao vivo, sem público, na Igreja do Espírito Santo, nas Caldas da Rainha, por ocasião de uma actuação que foi transmitida em directo para o programa de rádio do Osso Colectivo. A música resultante é livre e desenvolta; visita tanto paisagens calmas como buliçosas, numa dinâmica que surge com imensa naturalidade e que demonstra que a ousadia e risco artísticos impostos a este trabalho se revelaram uma mais-valia, tornando-o em mais um documento essencial para a compreensão do actual estado da arte da música criativa em Portugal. 

O álbum abre com “Dust”, tema em que Furtado cria várias camadas de texturas, simbólicas da tal poeira a que o título do tema faz alusão, enquanto Lencastre deixa-se flutuar, tocando circularmente, acompanhado pelas notas longas, negras e sombrias de Faustino. Escutam-se, depois, os primeiros laivos de uma proto-melodia por parte do altista, que lentamente se desvanece, ocultando-se o trio novamente na neblina. Não estranharíamos se depois desta introdução o trio seguisse pelos caminhos do doom, do sludge ou do stoner, mas a via escolhida é prontamente desvelada em “Points of Departure”.

O que se segue, então, é free jazz electrizado, com um certo toque de gramática old school, mas com um feeling totalmente contemporâneo. O baixo de Faustino é clean e punchy, provocador, dir-se-ia até, sempre a questionar as ideias de Lencastre, que amiúde se vê tentado a desenhar esboços melódicos. Há um sparring de corpo a corpo entre Faustino e Lencastre neste tema, no qual Furtado preenche os interstícios da matriz saxofone-baixo como cola que junta os pedaços que restam de um combate a dois. Não significa isto, no entanto, que não haja aqui orgânica de grupo. Esta é, aliás, assegurada exactamente por Furtado, o verdadeiro sustento rítmico, pois Faustino viaja livre, descolando-se do papel típico do baixo rítmico para se lançar em confrontos musicais com Lencastre, os quais fazem “Points of Departure” crescer gradualmente em intensidade. Dita dinâmica continua até que o estado de transição é atingido, momento em que o trio volta a descer à terra, pavimentando o caminho para o início atmosférico de “Cascade”, que acaba por se desenvolver por trilhos semelhantes aos explorados no tema anterior.

A lava de “Lava Flow” vem de magma livre e sem forma. Aos poucos, e à medida que é expelida e flui, vai ganhando forma. Primeiro, Faustino marca o compasso com um ostinato que impele o alto de Lencastre, tímido e calculista, a vir à tona, acompanhado pelas peles de Furtado. Depois, há diálogo entre Lencastre e Furtado; Faustino ressurge de supetão, com um baixo mais bluesy e distorcido, dando assim início à coda final, que desbrava caminho com toda a pujança. “Jellyfish sea” apresenta dinâmica similares, reforçando uma ideia de trio que tanto sabe acelerar e ser intenso, como sereno e delicado. “End Song” termina o disco em acalmia, apenas com Furtado e Faustino em cena. Lencastre abstém-se de tocar. O combate, esse, já havia sido ganho; em equipa, está claro – uma vitória a três. 

Sem surpresa e com classe, o trio Lencastre-Faustino-Furtado revela-se uma vez mais como um dos mais entusiasmantes a tocar free jazz em Portugal. Mais uma vitória para a formação e mais um belo lançamento, que tanto estimo ter na minha colecção, da Phonogram Unit.