Conta João Pedro Brandão, em notas de apresentação de Trama no Navio, que “em Setembro de 2019, a Orquestra Jazz de Matosinhos desafiou alguns compositores a escrever música para essa formação com o objectivo de musicar o filme ‘O Couraçado Potemkine’ de Sergein Eisenstein”, e que a Brandão coube a tarefa de escrever para a segunda parte do filme, “Drama no Navio”. Além disso, nas mesmas notas, é também referido que existem importantes diferenças entre a música original e a que é aqui apresentada, pois daquela apenas “ficou a sua espinha dorsal”. Dito isto, compreender-se-á prontamente a origem do título. Igualmente, poder-se-á facilmente prever que, devido às circunstâncias associadas à criação e composição da obra, existam nela laivos da película que lhe está subjacente. E, de facto, Trama no Navio, tal como um filme, possui uma forte dinâmica de espaço e tempo.  

Em relação à dimensão de espaço, é de referir a extensa utilização do silêncio e da amplitude sonora – esta última, talvez resultado de uma cuidada produção -, assim como a generosidade da composição, aberta à possibilidade de alguns dos músicos nela envolvidos solarem sempre que tal seja oportuno. Por outro lado, relativamente ao eixo do tempo, a evolução temporal da narrativa está patente nos altos e baixos da composição – leia-se, nos momentos de acalmia e de profusão -, que se traduzem em actos ora de eufórica acção, ora de neurótico calculismo; ora de plena contemplação, ora de sufocante tensão; ora de doce harmonia, ora de assustador suspense… enfim, a dialética é constante e a imagética tão notória que, ao longo da audição de Trama no Navio, facilmente poderemos esboçar esquissos mentais da densa narrativa que se vai sucedendo. 

A peça inicia-se num ambiente contemplativo e de plenitude – caracterizado pela coerência e beleza das melodias que se escutam -, rapidamente evoluindo para uma atmosfera tensa e calculista. Seguem-se momentos de sufoco, com Hugo Carvalhais e Ricardo Moreira, no contrabaixo e piano, respectivamente, a tocarem os seus instrumentos em stacatto; Brandão, no saxofone, sopra frases curtas e inacabadas, terminando-as de forma abrupta, como que dali se escapulindo; Marcos Cavaleiro, na bateria, desdobra-se entre pontuar ritmicamente a narrativa e adicionar-lhe caracterização tímbrica e cinemática (relativo a movimento, note-se). É então que, com a saída do saxofone de Brandão de cena, este inquietante clima se resolve gradualmente: cada instrumento desentrelaça-se lentamente dessa matriz que o prende, começando a escutar-se pistas de um piano que se quer aventurar por abordagens modais, de uma bateria que quer swingar com energia e desenvolvimento, e de um contrabaixo que explora vários ostinatos e frases que cimentam o agora trio_._ Por fim, Brandão parece trazer a redenção juntamente com a flauta, e o quarteto finalmente se liberta da maldição que até aqui o assombrava. Entra-se, agora, num segmento de profunda reflexão, que parece ter o propósito de sarar feridas e traumas. Este é um período de luto que não poderia ser melhor descrito do que através do solo de Carvalhais, subtilmente acompanhado pelo piano, no qual cada nota sofre e chora, imbuída em tristeza e sofrimento. Posto isto, o grupo ganha novamente momentum e coloração, com Moreira a tocar o piano com um lirismo à lá Jarrett. Tudo estaria em harmonia, não fosse o trio desestabilizado por uma forte dissonância soprada pelo saxofone de Brandão, que propulsiona o grupo a entrar novamente em conflito. O desenrolar da história vai-se tornando, então, mais claro: Brandão, como interlocutor principal, é sempre o grande protagonista da acção em termos de influência, levando a jogo uma forte carga disruptiva que incita ao desenvolvimento narrativo; Moreira, em certos momentos, troca o piano pelo Hammond, amiúde divertindo-se em homofonia com Brandão; Carvalhais acompanha o movimento em walking bass; Cavaleiro fornece ainda mais tracção a uma locomotiva já só de si imparável. Atinge-se, agora, um outro pináculo da acção, simbolizado com Brandão a tocar dois saxofones concomitantemente (quem viu o concerto do Fast Forward sabe ao que me refiro), num épico e excêntrico momento. A dominância do saxofone é de tal forma evidente que o grupo se silencia para que aquele se faça ouvir. Por fim, o quarteto mergulha em mais um segmento modal, que acaba por desaguar em geografias meditativas, repletas de legatos e texturas, com esporádicas indicações de uma possível e tentada rebelião, que, no entanto, acaba por nunca se concretizar. Respiramos fundo… houve trama, efectivamente, e vivida de forma bem intensa. 

Trama no Navio é uma notável demonstração de técnica, criatividade, originalidade, visão e talento. É uma suite épica, uma ode à arte. Simplesmente brilhante…