Se é um lugar-comum que da prática e repetição advém a formatação, é igualmente sabido que – salvo raras excepções – quem não domina as regras, na hora de as quebrar, acaba por se iludir em devaneios diletantes. Esta é uma frase tão trivial quanto verdadeira – não fossem a maioria das trivialidades, verdadeiras – sendo que nela está contida muita da dinâmica das coisas: do fino balanço entre a ordem e o caos, passando pela relação entre o conhecimento e a aprendizagem, até à dicotomia entre a exploração e o conforto. Ora, João Almeida, claramente, absorveu o melhor que os diferentes pólos do universo musical têm para oferecer: se, por um lado, durante a sua licenciatura na Escola Superior de Música de Lisboa terá, certamente, tido contacto e aprendido a tradição, por outro, foi também aluno de Peter Evans, um mestre da experimentação e improvisação. Assim, talvez tenham sido estas bases sólidas e diversificadas, aliadas a inúmeras colaborações com sonantes nomes da cena da jazz nacional, assim como a experiência em grupos como Fragoso Quinteto, GARFO, Chão Maior, Uniforme, e Sismos, que propulsionaram o jovem de 23 anos a embarcar numa aventurosa e corajosa navegação que resultou em “SOLO SESSIONS *​|​|​|​|”, o seu álbum de estreia, que – tal como o título alude – é uma viagem a solo, habilmente conduzida pelo trompetista, e com poucos paralelos no universo português. Soa irreverente? É que só ainda ora começámos…

João Almeida, qual alquimista com o seu caldeirão, começa o disco a cozinhar texturas que – porque o que os olhos não vêem a mente imagina – despoletam fortes sinestesias: estimulados pela granularidade onomatopaica dos sons emitidos em “Awkward”, somos transportados para o profundo de uma noite escura, onde ora somos consumidos pelos sons de aracnídeos que nos circundam, ora somos visitados pelo arfar de famintos javalis que batem com seus cascos na terra. Tais ambientes abstractos e experimentais são igualmente explorados em temas como “Membrane”, “Points”, “Steps” e “Wobble”,  onde o trompetista investiga as possibilidades sónicas que o seu setup minimalista é capaz de produzir. Desta forma, estes são temas para se escutarem minuciosamente, apreciando a palete de frequências e a panóplia de formas sonoras que o instrumento acústico de João Almeida transmite, assim como as sensações físicas e mentais por elas provocadas. Já em temas como “Alternate” e “Stuck”, existem laivos de uma certa continuidade, ou, talvez, coerência, pois, amiúde, são notórios rudimentos de breves motivos melódicos e estruturais, que sempre que se dão como estabelecidos são destruídos pelo próprio criador, qual iconoclasta dos seus próprios símbolos. Para além disso, é, também, a ausência geral de estrutura rítmica que faz deste disco uma experiência peculiar: a falta de orientação temporal dissolve o tempo, mergulhando-nos num universo sem referências e, portanto, infinito. Por fim, um destaque especial para o tema “Train” - o mais longo deste trabalho - onde eludindo finais, abreviando inícios, e saltando meios, o avançar de uma locomotiva é abordado de vários ângulos, como um observador incorrendo em vários erros de paralaxe, ironicamente perdendo-se no seu próprio train of thought… 

Não obstante a abordagem exploratória e experimental ser ousada para um primeiro registo, não se pode deixar de respeitar tal decisão que, por suposição, poderia-se, candidamente, imaginar que provém da saudável inocência de quem ainda não está comprometido; porém, à medida que, gradualmente, se progride na audição do disco, a surpreendente maturidade musical e intencionalidade conceptual do trompetista acaba por emergir, rematando qualquer dúvida sobre o intuito da ideia e mensagem veiculada. “SOLO SESSIONS *||||” é uma exploração livre dos limites tímbricos e mecânicos do trompete, e também (parte de) um diálogo íntimo com aquele que foi, provavelmente, o maior confessor de João Almeida durante esta quarentena – o seu trompete. Desta forma, este é, indubitavelmente, um trabalho merecedor de uma atenção cuidada, que faz jus às suas referências (e.g., Peter Evans, Nate Wooley e Axel Dorner), e que prenuncia um futuro promissor da parte do trompetista. Resta, agora, esperar que grave mais explorações guiadas porque eu, certamente, estarei cá para as escutar!

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