Acredito que uma das virtudes da música improvisada é a capacidade de expressar as profundezas da nossa existência humana. E um perentório exemplo desta possível expressão é sem dúvida o mais recente álbum do trio que reúne Yves Arques (objectos e electrónica), João Camões (viola) e Luise Volkmann (saxophone). Decerto que o mais familiar destes músicos para os leitores portugueses será Camões, violista de formação clássica muito ligado à cena de improvisação livre e criativa que já nos trouxe, entre outros, os fantásticos Bien Mental (Fou Records, 2015), À La Face Du Ciel! (Shhpuma, 2016) e Autres Paysages (Clean Feed, 2017), álbuns que gravou com Jean-Marc Foussat e outros colaboradores. Yves Arques é um improvisador francês residente na Alemanhã, activo na cena de música experimental em ambos os países, tendo, por exemplo, já participado no trabalho Selon Le Vent (2019) – juntamente com Camões e Gabriel Lemaire – cunhado com o selo da portuguesa JACC Records. Luise Volkman é uma saxofonista teutã residente em Colónia, igualmente ligada à esfera da música contemporânea e improvisada, tendo já um significativo corpo musical que conta com mais de uma dezena de trabalhos. Os três juntos formam os Gelber Flieder, nome alemão para lilás amarelo, planta pertencente à família das Ölbaumgewächse, designação que engloba as tão nossas oliveiras e que dá título ao álbum de estreia do grupo, editado pela portuguesa Creative Sources. A gravação teve origem numa sessão realizada num só take na La Petite Maison, em Paris, em 7 de Dezembro de 2016. Contém um tema único - aproximadamente 30 minutos de improvisação livre -, que se espraia pelos domínios da música experimental e abstracta, baseando-se quer em sonoridades acústicas quer em sons electrónicos.

Uma canção infantil dá o tiro de partida para uma caminhada a passo lento, imersa numa sempre dinâmica aproximação e análise à verdade do momento. O universo com que nos deparamos inicialmente contrasta com a puerilidade da cantiga introdutória, carregando consigo um fardo fantasmagórico, espectral, temoroso e repleto de suspense. A viola de Camões - amplificada ao ponto dos mais minuciosos pormenores serem perceptíveis - produz rugosidades e contínuos estáticos, sendo a mecânica do arco utilizada para gerar ora sons suaves ora asperezas sónicas. Saliências e irregularidades topológicas na ondulatória sonora são também escutadas, como que acidentais singularidades inerentes à imperfeição do instrumento. Às tantas, emergem também notas distintas, frequências perfeitas que são muitas vezes sombreadas com harmónicos ou harmonias geradas por cordas duplas. Já os objectos e electrónica de Yves Arques - para além da última estabelecer o tecido matricial que suporta toda a criação – funcionam como um campo invisível que vibra invariavelmente, adicionando à peça movimento e momentuum, além de a embalarem e contextualizarem com texturas que adensam o ambiente e lhe conferem elementos essenciais de caracterização. Além disso, Arques possui também um papel de descrição da dimensão percussiva das cenas, sendo porventura o mais rítmico dos elementos do trio (hiperbolizando, claro está, a sua abordagem). Por outro lado, Luise Volkmann farfalha e sussurra sopros que por vezes evoluem para estalidos e crepitações, tal é a pressão imposta pelo soprar da saxofonista. A crespidão do seu tocar é húmida e orgânica, com o saxofone a surgir como o meio físico de manufactura da sua palete dramática. À semelhança do que acontece com Camões, eventualmente também afloram do seu tocar sons claramente tonais, resquícios de uma realidade já superada. É, por isso, que, para mim, esta é uma viagem pós-estruturalista, de profunda desconstrução - que aqui se encontra já estabelecida -, ao ponto dos laivos de tonalidade e de ordem musical surgirem como intrusivos e desconcertantes.

Por volta do décimo quarto minuto - e depois de uma catártica apoteose de rápida frequência -, o clima de apreensão vai-se gradualmente resolvendo, dando então lugar a um espaço airoso e amplo onde é explorada uma estética mais serena e primorosa. O uso de técnicas extensivas continua a ser uma constante, assim como as permanentes interacções entre os músicos. Além do mais, o carácter ex tempore da improvisação não poderia estar mais enfatizado do que no tossir e nos assobios que de quando em quando se escutam, lembrando-nos que, afinal, são humanos que aqui se encontram a gerar esta paisagem sonora, tão distantes e alienados que já nos encontrávamos de qualquer ligação antropológica. Após este “interlúdio” mais límpido e plácido – onde, inclusive, se chegam a ouvir reminiscências superficiais de melodias -, regressamos à atmosfera que caracterizou o segmento inicial da peça. E assim somos levados até ao final da mesma, numa permanente luta com as amarras duma omnipresente mas oculta presença que assombra o trio, levando-o a atravessar estados de aflição e ansiedade até se libertar e se reencontrar com o equilíbrio, atingindo, assim, por fim, a plenitude. Ölbaumgewächse é uma viagem para bravos – é preciso coragem para a acompanhar e ainda mais para nela submergir. Apesar disso, o mundo fractal que nos é apresentado é de uma riqueza geométrica maravilhosa. Não é para todos, mas também não terá sido essa a vontade do trio.