Cadernos de esquissos. Registos de sensações. Pergaminhos de sombras. Pensamentos subterrâneos. Alegorias inacabadas. Apontamentos de ideias soltas. Mini-ensaios, livres e fugazes. Pós-haikus absolvidos de estrutura. Explorações noéticas de imagens musicais. Impressões mítico-poéticas sobre som e forma. Em Cadernos do Underground, encontra-se em foco música de várias dimensões e polimorfias. Sem a elevação de Fiódor Dostoiévski nem a analítica de Theodor Adorno, é como se László Krasznahorkai ou Thomas Bernhard escrevessem ao ritmo de Jack Kerouac. Cadernos do Underground, uma coluna sobre heterodoxia musical.


Vera Morais & Hristo Goleminov - Consider the Plums (Carimbo Porta-Jazz, 2022)

A cantora Vera Morais e o saxofonista tenor Hristo Goleminov – músicos que têm desenvolvido parte do seu trabalho a partir de Amesterdão – lançaram, no início do Outono de 2022, Consider the Plums. Este álbum de estreia da dupla consiste numa dança a dois, baseada maioritariamente em textos do poeta norte-americano William Carlos Williams (e um par de originais escritos por Vera), os quais foram musicados em composições que estabelecem várias vias de comunicação entre o jazz e a música contemporânea.

Com notas de apresentação do pianista Alexander Hawkins, que descreve o conteúdo sónico deste trabalho como sendo “parcimonioso, mas humano e nunca severo”, a verdade é que as dinâmicas não-lineares que perfazem Consider the Plums, as quais são fonte de trajetórias traçadas num sincronismo perfeito entre os dois músicos, acabam a unir mundos que a priori acharíamos estarem totalmente separados: o da elegância sublime e o do realismo cru.

Ora complementando-se mutuamente em homofonias ou através de fraseados assentes em relações harmónicas (escute-se, por exemplo, “Peaches”, “The Bare Tree” ou “Grumos”), ora entrando em tensão declarada em “To a Poor Old Woman”, Vera e Hristo mantêm um dinamismo interessante ao longo de todo o disco, num diálogo equilibrado e sem protagonismos declarados. Apesar do total despojamento de instrumentação adicional, a qual poderia conferir camadas de arranjos que tornariam este disco mais “acessível” do ponto de vista do ouvinte, a música que aqui se encontra cativa tanto nos sons como nos silêncios - e isso, decisivamente, é de louvar.

A voz de Vera – cantora de uma impressionante dicção cristalina - é de uma versatilidade notável tanta na forma e intensidade como na interpretação dos textos e dos fraseados melódicos, sendo também dada a experiências com técnicas vocais extensivas (ouça-se o início de “The Term”). E o saxofonismo de Hristo é também ele bastante completo, acolhendo com a mesma facilidade multiphonics (em “Fresta”), tocares guturais ou sopros plenos de brandura. Assim, e ainda que exija escuta atenta, Consider the Plums revela profuso talento e uma musicalidade singular. Quem a ele se lançar, já sabe ao que vai… de resto, é desfrutar.

Tavares / Trocado / Ward - Corrosion (Carimbo Porta-Jazz, 2023)

Depois de estrearem-se como trio numa edição de autor de 2019, intitulada Vestiges, Sérgio Tavares (contrabaixo e voz), Nuno Trocado (guitarra e eletrónica) e Tom Ward (flauta, saxofone alto, clarinete e voz) voltaram, este ano, ao discos com o lançamento de Corrosion. Como em equipa que ganha não se mexe, este é, portanto, um regresso expectável e muito bem-vindo, dado que o registo anterior já tinha sido uma aposta ganha no campo da improvisação livre com cunho português. 

Entregando-se por completo à experimentação sonora, o trio aventura-se, ao longo de 9 temas, por geografias retiradas de um mundo pós-industrial – talvez mesmo apocalíptico -, onde abundam casas devolutas, fábricas abandonadas, estruturas metálicas e muita, muita ferrugem. É um cenário desolador, esta distopia aqui recriada com precisão e engenho, sobre a qual paira uma atmosfera sombria só pontualmente levantada para breves momentos de luz. 

Quer seja a explorar possibilidades texturais e tímbricas em “reflecting the uncanny” e “undercarriage rust” ou a enveredar por uma espécie de pós-free-jazz em “aquifer” e “contaminated by faltering frequencies”, a música de Tavares, Trocado e Ward é rica em detalhes e diversa em imagética. As sinestesias são também abundantes, com os sopros e as cordas a surgirem amiúde atestados de aspereza e rugosidade. Além disso, a suavidade insidiosa da eletrónica é também ela foco de interesse pois, com facilidade, altera o seu caráter macio e aquoso para assumir contornos pulsantes e distorcidos.

Mas não só de lugares densos e nebulados é feito este disco. Ha também nele muita lucidez - num sentido puramente musical, não conceptual - como o demonstra a flauta de Ward em “synthesising the celestial”, o contrabaixo de Tavares em “derationalise” ou a guitarra de Trocado em “dissipation”. E, tudo junto, claro, é um verdadeiro deleite. Ora aqui está um excelente exemplo de descoberta musical eletroacústica que pede por repetidas audições.

THEMANDUS - THEMANDUS (Carimbo Porta-Jazz, 2023)

Jazz mesclado com rock ou rock com laivos de jazz? A música fusionista dos THEMANDUS deixa a questão em aberto neste álbum homónimo que testifica com nitidez duas premissas: primeiro, o ecletismo dos lançamentos do Carimbo Porta-Jazz, que se espraiam do jazz de fusão à improvisação livre (atente-se, por exemplo, nos destaques desta coluna); segundo, que há jovens músicos com visões musicais bastante válidas e definidas, que merecem ser amplamente ouvidos e apoiados, mesmo estando em início de carreira.

A proposta deste trio formado por Afonso Boucinha Silva (saxofone alto), Eduardo Carneiro Dias (bateria) e Ricardo Alves (guitarra) – aos quais se junta a voz de Carlos Fonseca para participações pontuais – é uma agradável brisa no panorama nacional. Com uma sonoridade aliciante que vai beber ao space jazz-rock de bandas como Elephant9 e Jagga Jazzist, ao post-rock/metal de Mogwai e Isis, ou à eletrónica de Boards of Canada e Aphex Twin, este álbum de estreia do trio, de clara aptidão narrativa, inclui ainda vários elementos originais, com a improvisação a surgir como a flutuação quântica, o princípio de incerteza que apimenta a travessia.

A surfar pela orla do sistema solar, as guitarradas etéreas e reverberantes de Ricardo Alves entrelaçam-se com o revigorante fraseado jazz-prog de Afonso Boucinha Silva – que, em vários momentos, inteligentemente recorre a um EWI para adicionar a dose certa de acidez aos temas – e os beats rock de Eduardo Carneiro Dias, sempre acertados e funcionais. E a verdade é que seja a abanar a cabeça nos breakdowns de “The Collision of Moon at Aphelion”, a viajar pelo espaço-tempo em “Wandering Voyage” ou a groovar intensamente ao som de “Zapper”, há aqui substância mais do que suficiente para facilmente submergir-se na ficção científica dos THEMANDUS e com ela navegar em órbita pelo cosmos. Assegurada a energia certa, imagino que ao vivo, em concerto, a experiência ganhe muitas outras dimensões de interesse. Sem sombra de dúvida, é continuar em frente… Space Is the Place!