Gravado em dois momentos na primeira metade de 2022, Membrana é o primeiro álbum dos 293 diagonal, grupo formado pela cantora (e poeta, poder-se-á também dizer?) Joana Raquel e pelo saxofonista Daniel Sousa, aqui ao comando de um alto. Neste seu trabalho de estreia, a dupla apresenta um disco muito próximo de uma obra conceptual – quiçá art-jazz, para fazer uso da terminologia análoga usada no art-rock –, a qual, devido à natureza e número dos instrumentos, expõe por completo os seus interprétes. Um trabalho ousado para estes jovens músicos, que, no entanto, nele demonstram estar completamente à altura de apostar em ideias arriscadas - as quais, seguramente, não carecem de originalidade - e de as materializar em música que não só soa bem como também desafia o ouvinte, exigindo-lhe atenção e pensar.
Na primeira parte de Membrana, intitulada “Pele”, a dupla, em contexto acústico, começa saudando o ouvinte, individualmente, num espaço recatado e distante. Após uma tímida entrada, rapidamente apresentam temas bastante interessantes como “Pele: Amanhã”, “Pele: Cicatriz” ou “Pele: O Difícil Ato de Planar”, em que a poesia escrita por Joana Raquel é gatilho para uma imagética à qual não faltam verbos, ideias e objetos do quotidiano que são propositadamente transportados para universos imaginários, a que não pertencem necessariamente, construídos com recurso a uma linguagem particularmente física que é fonte ilimitada de sensações e rica em jogos de palavras. Sobre tela em branco e numa dança a dois, voz e saxofone desenham então música a traço fino, num clima de proximidade, por entre curvas e contracurvas, arcos e mudanças de direção. Por vezes, quando a música assim o pede, trocam o pincel para colorir a aguarelas, fazendo-o com leveza e sensibilidade – a voz e saxofone alternam de papel: agora, eu a luz, tu os sombreados; depois, tu os contornos, eu a cor.
Nos dois temas que concluem “Pele”, Joana e Daniel juntam-se ao duo LUMP – formado por João Almeida (trompete) e Mariana Dionísio (voz) – para dois momentos finais muito bem conseguidos. Ao duplicar o tamanho da formação, o número de interações entre os músicos sextuplica, e a música ganha, por consequência, uma dinâmica mais profunda, complexa. As melodias e harmonias conjuntas são lindíssimas, e tem-se a sensação que o quarteto, girando à volta de si mesmo, se vai gradualmente afastando, convertendo aos poucos energia potencial em cinética, equilíbrio em tensão, para, por fim, numa música (novamente) cheia de fisicalidade, culminar em total rodopio, num torvelinho de sons. Rebenta a pele.
Já em “Espinho”, segundo capítulo deste trabalho, o qual “se desenha sobre field-recordings da cidade do Porto e discursos fragmentados, num formato mais experimental”, escuta-se o duo em busca de sentido para a paisagem sonora que o rodeia. Mais uma vez o quotidiano a surgir, agora como nascente de texturas e fragmentos sónicos. O Homem e o seu meio; o meio e Homem. A membrana, a interface que separa, é dissolvida em composições que mapeiam o contínuo entre o analógico e o digital, o homem e a máquina, o abstrato e o concreto. Daniel Sousa dá densidade aos temas com sopros e eletrónica, e Joana Raquel reveste-os de rastos vocais etéreos. Em micro-composições a rondar os 30 segundos, declamam-se mini-ensaios absolvidos de estrutura. E assim segue a dupla, a viajar por entre a selva urbana, tateando-lhe a essência para logo depois a modelar. Com um pé na música concreta e outro na proto-pop experimental, terminam, por fim, num registo que poderia muito bem ter saído de um trabalho de Sam Gendel. Está assim coroado um álbum que é uma firme declaração artística de músicos que claramente ainda têm muita coisa bonita para dizer.