A ideia era fazer uma entrevista de carreira a João Alegria, e graças à colaboração do músico o resultado foi mesmo esse. A história por detrás desta entrevista resultaria ela mesma numa outra entrevista – ou se se quiser, numa meta-entrevista. No entanto, e independentemente do tempo que este trabalho demorou a ser preparado e publicado – responsabilidade total do entrevistador, atente-se –, as palavras que agora aqui se reúnem contam a história de alguém cujo trabalho no underground português não pode senão ser respeitado.

“You paint for fame & status, I paint for freedom & awareness”, lê-se num dos graffitis verticais que Mr.Paradox Paradise pintou num qualquer prédio berlinense. Assim mesmo, nada há na arte de João Alegria que seja feito com o intuito de fama ou de likes. Passou mais de uma década a editar com reconhecimento circunscrito à “comunidade” de nómadas do som. “Ando nisto já há algum tempo e não tenho um público muito vasto”, admite o próprio. No entanto, quem sabe, sabe. E quem sabe, gosta. A música de João Alegria é para connoisseurs. Porventura, sempre assim o será.

São, contudo, os contornos únicos da sua arte, aliados a uma teimosa consistência estética e prolificidade, as características que concomitantemente a nidificam e vitalizam. A forma incondicional e obstinada como este “guitarrista” – como gosta de ser chamado – tem erigido a sua obra é um caso raro de perseverança. A sua motivação? Não é totalmente explícita, mas algures entre o amor à música e a necessidade fisiológica de criar vive a verdade de João Alegria. Se vive porque respira, parece fazer música porque tem de viver. Sente-se no seu discurso uma inevitabilidade de génese catártica que sorrateiramente emerge entrelinhas como vulto que deambula pela noite.

João Alegria pode, também ele, mover-se pelas sombras, mas a sua música definitivamente aponta aos céus, plena de verticalidade… esta entrevista de fundo elucida porque assim o é.


Antes de nos debruçarmos sobre o teu percurso musical desde que decidiste, em 2011, colocar o teu primeiro trabalho na internet, fala-nos um pouco sobre quem era o João Alegria antes desse momento. Quais eram, na altura, os teus interesses musicais e como foram os teus primeiros passos na música?

Era doente, inconsciente e inexperiente, uma combinação explosiva.

O ponto de viragem musicalmente foi começar a ouvir Charles Mingus e o Sound Mind Sound Body do Rafael Toral. Ler uma entrevista do Ernesto Rodrigues em que ele dizia qualquer coisa como hoje em dia ser possível fazer um bom concerto com uma nota apenas. E por fim ver a VGO do Ernesto na ZDB em 2006, ou por aí, creio eu.

Mas na altura ainda não tinha a lucidez necessária, para acertar no caminho, para me descobrir realmente. Levei tempo, estava a crescer, em todos os aspetos, está tudo ligado. É normal. Ter uma voz própria é fundamental mas nem toda a gente lá chega ou percebe isto, normalmente são muito novos.

Comecei a tocar guitarra aos 13 anos, fui para uma escola de música mas desisti passado pouco tempo. Saí de lá a saber fazer os acordes mais comuns. Fui desistindo de muita coisa, hoje arrependo-me de algumas.

Lembro-me do fascínio por uma guitarra elétrica com um mini amplificador a pilhas numa festa de aniversário de um amigo em pequeno. Estava sempre desejoso que chegasse a minha vez de tocar, e, quando os outros foram virando atenção para outras coisas eu não deixei mais a guitarra naquela festa. Quis comprar uma e tocar por cima de Pink Floyd na aparelhagem.

O que te levou a iniciar uma carreira a solo e como se deu a definição da tua identidade musical que, verdade seja dita, tem mantido traços constantes ao longo dos anos?

A identidade é fundamental, fui ganhando, fui percebendo como isto funciona, embora antes de editar as primeiras coisas já só fosse fiel ao que eu era na altura. Fui percebendo o que é necessário, que abordagem ter à guitarra, aos concertos, etc… Relativamente aos concertos, só em 2015, nos últimos dois que dei, é que percebi realmente o que é preciso para subir a um palco, o que se vai passar ali, ou o que tem de se passar ali e deixar qualquer tipo de receio ou consciência errada para trás. Como em tudo, leva tempo. Foi também o que aconteceu.

Foi um processo normal de evolução para o que sou realmente, um bocado por acaso também. Mantive o que era. Não dissocio a música da minha vida, depois de deixar as (poucas) bandas que tive, continuei a tocar e a ter este chamamento da música.

Às tantas, mostro umas gravações que tinha ao Ricardo Mariano e ele sugere que crie um bandcamp. Assim foi. Depois veio um sem fim de elogios que também me deram força para continuar a publicar o que ia fazendo. Bem como um meio desconhecido para mim, ao qual não me agarrei a tempo. Era novo, muito novo até.

A tua obra é composta por um extenso corpo de trabalho, que conta já com 32 lançamentos no teu bandcamp, além de vários trabalhos editados por outras etiquetas. São mais de dez anos de produção contínua, movidos por um inabalável ímpeto criativo que teima em não definhar. O que é para ti ser underground numa realidade musical já de si restrita aos nómadas do som interessados em música não-convencional?

Assim é porque a grande maioria das pessoas não precisa de ouvir isto, porque a grande maioria das pessoas está conectada com coisas a que nós não estamos. E nós estamos conectados a coisas que elas não estão, vivemos em espectros distintos.

A maioria das pessoas não percebe o que aqui se passa, não são sensíveis a isto, têm outras sensibilidades, é assim mesmo.

Nós ressoamos em pessoas com comprimentos de onda semelhantes ao nosso, não vale a pena ter ilusões. São acontecimentos raros.

É diferente ouvir Ligeti e ouvir Travis, os requisitos são diferentes. Mas também me sabe bem ouvir os Travis de vez em quando, se estiver na disposição certa para aquilo.

Isto não é um fenómeno de massas. Longe disso.

Mas há gente interessada e bem mais que isso, pessoas a quem aquilo tem um efeito muito evidente. A música pode ser perigosa também. Houve pessoas que me disseram que música minha as transportou para lugares onde não queriam ir, onde não queriam estar, lugares mentais, perigosos, desconfortáveis.

Houve um amigo que me disse que começou a repensar a vida dele depois de ouvir a minha música. Começou a perguntar-se o que queria realmente fazer da vida dele.

O choro de alguns como também aconteceu, etc., são coisas muito assinaláveis, pelo menos para mim. São exemplos fortes.

Há uma relação forte com a noite, com o isolamento também, uma ligação ao cosmos.

As pessoas tocam o que são, li isto há pouco tempo e é verdade, nas suas várias dimensões.

Se escrevesses um guia para introduzir novos ouvintes à tua música, quais os lançamentos que destacarias e em que ordem sugerias que fossem escutados para que a tua obra fosse compreendida de forma integral?

VI é o meu álbum mais acessível, seja lá o que isso for. Já se chamou Une Autre Mer. Pode ser um bom ponto de partida. Vai sair uma reedição deste álbum em breve, com um acrescento de material novo feito de propósito para ela. Andei, contra a opinião do editor, a defender que isto tinha de sair em cd e de fábrica. Gosto de pensar que estas coisas vão durar e que se alguém daqui a 50 anos pegar naquilo, consiga ouvir em condições ainda. Este álbum é uma boa amostra para os meu anos de guitarra acústica. Para os anos de guitarra eléctrica, que são os mais recentes, indico o XXVII e o XXXII, os dois gravados em 2015. São coisas com peso, feitas numa fase muito peculiar. Depois, se houver vontade e disponibilidade mental ainda sobram muitas horas de material para ouvir.

Consegues enquadrar a tua música num plano global? Seria fácil colocar-te na gaveta da música drone, noise, ambiente e industrial, mas, de certo modo, identificas-te como sendo um improvisador e um experimentador, rótulos bastante gerais. Rejeitas classificações definitivas do teu som ou consegues encontras nele características indissociáveis de certas estéticas musicais específicas?

Não me preocupam as gavetas, não lhes ligo muito, não creio que sejam relevantes, não é o que interessa quando se ouve a música. São boas para rotular as coisas, para as pôr em caixinhas mas não gosto quando identificam a minha música como eletrónica por exemplo, porque não há eletrónica nenhuma, muitas pessoas acham que há para ali sintetizadores e não há. Não tenho nada contra a eletrónica, muito pelo contrário, tenho vontade de me fechar uns anos e só trabalhar em eletrónica, gravação de campo e em fotografia.

Não morro de amores pela designação experimental também.

Gosto que me chamem guitarrista, tenho uma ideia romântica sobre isso, dos singer-songwriters dos anos 60 e 70. Gosto de pensar que tenho alguma coisa para dizer com a guitarra. Townes Van Zandt, Bob Dylan, Leonard Cohen, Nick drake, Tim Buckley e Elliott Smith (que viveu mais tarde), foram e continuam a ser fundamentais para mim.

Nunca ouvi muito drone nem música ambiental ou música industrial, talvez a resposta certa esteja por aqui, por não me estar no sangue, ao contrário dos autores que mencionei.

Quais são as tuas principais referências nacionais e internacionais? Com que artistas e músicos gostarias de colaborar no futuro

Para além das pessoas com quem já tive ligação ou continuo a ter ou que tenciono continuar a ter, há ainda três fundamentais: A Joana Sá (que é das minhas preferidas), a Maria da Rocha e a Helena Espvall.

Internacionais, conto ter colaborações a serem lançadas pela minha editora, coisas sem a minha guitarra, explorando principalmente o som. Sonja Mutic é uma compositora que me interessa, por exemplo. Outro é o Andrea Borghi.

A tua performance musical vive de uma dimensão física, que requer um contacto próximo entre ti e o instrumento, como se este de uma extensão do teu corpo se tratasse. Revela-nos alguns detalhes sobre esta tua forma peculiar de tocar guitarra.

Começo por beber um ou dois copos de vinho, com calma, daí a pouco estou pronto, confortável e mais perto das coisas.

Tento estar um bocado em silêncio já com a guitarra ou não, para entrar e concentrar-me no momento. Deito-me e faço deslizar o arco lentamente nas cordas. Depois são as circunstâncias mentais e físicas que definem o resto.

Cada vez me interessam menos as torrentes mais agressivas. Já não tendo a ir por aí.
Há sempre um lado mais racional, mais matemático, que me leva a explorar um determinado movimento e não outros, por exemplo.

Este processo é fruto de um acaso também, há uns anos entusiasmei-me num ensaio com um baterista, o Jorge Nunes e comecei à paulada à guitarra. Desde aí que estraguei os trastes do braço da guitarra com a violência daquilo e passei a tocar com um arco por não poder fazer acordes, por não poder tocar de forma mais convencional. Comecei a usar um arco de um saltério que andava cá por casa e um pedal de efeitos que não tinha uso. O resultado foi este: anos e anos a tocar desta forma e fui evoluindo, acrescentando ou refinando, até não usar a guitarra praticamente de outra forma.

E para completar este processo criativo já de si bastante sui generis, uma grande parte dele é também feito no “corta e cose” da edição e da experimentação digital. É aqui que a magia acontece verdadeiramente ou a matéria sonora subjacente é crucial para que esta fase tenha sucesso?

É crucial, sim. Se não tiver boas bases nunca acontece nada de jeito. Normalmente não gravo mais de meia hora por sessão. Por vezes, divido a faixa ao meio e sobreponho as duas na edição. É um resultado meio ao acaso mas controlável na edição. Outras vezes são overdubs, gravo a segunda pista a ouvir a primeira.

Tens alguma preferência por alguma destas etapas? O que te motiva a compor nova música, o resultado final ou o processo? O que é procuras é sentido ou a sua dissolução?

Gosto muito de sentir material novo, gosto de editar e aperfeiçoar, ouvir. Tocar é uma coisa que acontece por necessidade. Mas tenho fases em que não preciso tanto, tenho períodos grandes sem pegar na guitarra, até porque o dia-a-dia não o permite.

Amiúde recorre-se ao conceito triádico de melodia, harmonia e ritmo para tentar explicar a música em termos técnicos, ainda que esta seja uma racionalização que não inclui outras dimensões também elas objectivas em contextos específicos, como timbre, dinâmica ou tempo. Apesar disso, há todo um leque de efeitos subjectivos da música que são postos de lado neste tipo de descrições, efeitos esses que, por norma, são os que realmente fazem com que as pessoas ouçam música e que tenham preferência por determinadas sonoridades em detrimento de outras. No contexto da tua obra, para que lado pendem as tuas ideias neste binómio em que objectivo e o subjectivo se defrontam? É a tríade melodia-harmonia-ritmo ideal para descrever os mantos cósmicos e ondulatórios que formam a matéria sonora das tuas composições? Ou poderíamos utilizar conceitos distintos para descrevê-la, muito mais associadas às artes visuais, tais como, por exemplo, forma, movimento, textura e cor?

Vejo o que faço mais como som do que música, essas referências mais subjectivas que mencionas aplicam-se melhor, parece-me. Mas gosto ainda mais de falar em mantos cósmicos e ondulatórios, por exemplo, como referes.

Em 2021, ano em que celebraste 10 anos de carreira, lançaste Vertical, um álbum de cariz antológico, pela combustão lenta records. Este trabalho baseia-se maioritariamente em material que já tinhas lançado anteriormente, que foi reorganizado especialmente para este lançamento. Como foi o processo de selecção da matéria-prima que originou este álbum triplo? O que descobriste sobre a tua própria música através desta experiência?

A selecção foi muito rápida, não sou uma pessoa indecisa. Tendo em mente algumas peças mais fortes ou que têm mais substância, foi fácil.

Percebi o contraste de coisas feitas há 12 anos atrás e coisas mais recentes. A tal transformação a que me refiro é esta também: tornei-me numa pessoa diferente, habitando um buraco mais negro agora mas conectando com algo Maior, principalmente quando sozinho e de noite.

Nos últimos anos, tens revisitado alguns dos teus trabalhos antigos. Ainda que esta revisitação não implique uma modificação per se da obra original, parece haver aqui uma tentativa de dar uma nova vida a composições passadas, talvez até de as reinterpretar à luz do presente. Esta prática remeteu-me para Herberto Helder, que corrigia frequentemente a sua escrita, mesmo depois de publicada, alterando-a quase obsessivamente, como se se tratasse de um trabalho impossível de terminar, infinitamente aperfeiçoável. Como tu próprio escreves no encarte de Vertical: “Transformação é o que me ocorre escrever. Até a rocha é mutável”. Ressoas com esta ideia de transformação contínua? Está a tua música para sempre inacabada?

Não acho que seja música datada, talvez seja tentar chegar às pessoas outra vez. Gosto de pensar que é intemporal. Mas assim como acho que é uma segunda tentativa, o mesmo se passa comigo, nas relações pessoais que são inevitáveis neste meio, vou tentar uma segunda vez com pessoas que pesam, que têm ou podem ter relevância na minha vida.

Disse há pouco tempo a uma pessoa que as minhas coisas vêm todas praticamente do mesmo sítio, do mesmo lugar. Nesse sentido sim, nunca nada está terminado. Acho que ando a tentar dizer o mesmo há muito tempo, como muita gente nestes meios.

Recentemente deste início a um projecto editorial, a Veia Records, através da qual já publicaste uma reedição de um álbum teu, o XXVII. Como é que se iniciou este selo e como será a sua linha editorial?

As coisas têm de ter peso para serem lançadas aí, não vou editar por editar ou porque vou tirar partido disso.

Contactei muitas editoras para tentar editar um álbum que tenho praticamente acabado, editoras a mais até. Obtive respostas positivas de algumas mas ora diziam que não tinham agenda ou que tinham o quadro preenchido, etc.

A minha vontade é passar por cima destes constrangimentos e fazer as coisas como quero e quando quero. Se me convidarem no futuro para editar, muito bem, cá estarei para analisar.

Ando nisto já há algum tempo e não tenho um público muito vasto, sinto que pode ser bem maior. Nunca fiz muito para isso acontecer, mas espero reverter isso nos próximos anos.

Por fim, quais os teus planos para a segunda metade de 2023? Algum concerto no horizonte?

A segunda metade deste ano está já aí, tenho mais dois álbuns praticamente fechados. Serão lançados pela minha editora em formato físico também, uma versão muito simples, muito despojada, com foco apenas no que é essencial, a música. E vou ter edições especiais, limitadas, com mais assunto e outras formas.

Concertos, espero dar dois ou três ainda este ano. Mas para o ano que vem, sim, já estarei mais disponível.

Gostava de começar a fazer bandas sonoras também, ando a começar a mexer-me nesse sentido.