
Reportagem disponível em jazz.pt:
https://jazz.pt/report/2022/03/21/um-brilho-natural/
Foi no passado dia 14 de março que o norte-americano Immanuel Wilkins passou pelo clube de jazz mais famoso do Reino Unido, o lendário Ronnie Scott’s, localizado no boémio bairro de Soho, sala de pura classe e inveterada elegância, por onde, desde a década de 60, têm passado alguns dos maiores artistas de jazz de várias gerações. As fotografias exibidas nas paredes testemunham precisamente esse legado histórico: passado, presente, e certamente futuro condensados num espaço que emana música e um profundo amor pelo jazz. Nos momentos que antecederam o concerto, pairava no ar uma conspícua aura de entusiasmo. Afinal, esta era a primeira vez que Wilkins tocava em Inglaterra, trazendo na algibeira um novo álbum que havia sido unanimemente aclamado pela crítica. As razões para sorrir eram muitas. Findava um dia de trabalho, o sol havia raiado ininterruptamente num dia sem drizzles nem dribbles, e a semana, que só ainda agora começava, trazia já consigo a oportunidade de ver e ouvir ao vivo um dos mais promissores jazzmen da contemporaneidade.
Sentados, a meia-luz, esperando a entrada do quarteto no reduzido palco central, a conversa, claro está, pendia para saxofonistas e sua música. Falava-se de Ornette Coleman e de como os álbuns reunidos em “Round Trip” se diferenciavam dos anteriores registos editados pela Atlantic. Mas o foco principal era naturalmente o ainda curto mas já notável percurso de Wilkins. “Dois álbuns fantásticos e com apenas 24 anos. É espantoso! O que irá fazer daqui a 10 anos?”, perguntava-se por entre baques de copos e talheres que tilintavam em preparação para o jantar. Conversa puxou conversa, e confirmei (novamente) que inglês não conhece jazz português, que o Brexit é obra de uma certa população com a qual nunca contactei, e que Nigel Farage é a perfeita definição da palavra cobarde. Nada de novo, nada de surpreendente.
Em curva elíptica, a conversa regressou à música, e reforcei a ideia de que “Lift”, última faixa de “The 7th Hand”, “aquela música muito longa”, é o diamante de uns e a comichão de outros. Certamente que Wilkins não terá tido tarefa fácil em convencer Don Was de que este tema constituía a abordagem certa para terminar um álbum no qual tanto abundam melodias cativantes como uma irreverência fresca e transgressora, que tem um pé nos cânones e outro no desconhecido e se assume despretensiosa em relação às vigentes fusões estilísticas, por alguns tidas como sinónimo da atual vanguarda de formulação jazzística. A improvisação, no seu estado puro e livre, mesmo quando se reveste e se sustenta numa matriz jazz, é sempre um risco para uma editora como a Blue Note, que tenta cuidadosamente equilibrar, num dos lados da balança, talento, inovação, e criatividade, com uma necessidade absoluta, implacável e exigente, por outro lado, de sucesso comercial e receitas chorudas que compensem o investimento em novos números para o seu catálogo.
Anunciado pelo carismático speaker de serviço, entrou em palco Immanuel Wilkins, de saxofone ao peito, prontamente assumindo a dianteira do palco. De imediato, surgiu Micah Tomas, que se sentou num piano de cauda à direita de Wilkins, seguido de Kweku Sumbry, de baquetas em punho, que se sentou à esquerda do saxofonista, enfrentando Micah Tomas. Por fim, entrou em placo Tyrone Allen - que surgiu no lugar do Daryl Johns, contrabaixista que participou nas gravações do álbum -, que ficou na retaguarda, atrás dos seus companheiros, posição que se revelou como natural, por ser o mais tímido dos músicos, porventura pela menor rodagem que tem com o restante grupo.
Homem de poucas mas simpáticas palavras, Wilkins cumprimentou a plateia, avisando que seriam tocadas, sem paragens, as 7 suites que constituem “The 7th Hand”. O público aplaudiu, anuindo – no final de contas, foi para isso que ali foi. Mal se escutaram as linhas inicias de “Emanation”, prontamente se compreendeu que o quarteto estava devidamente oleado e afinado. Com a intensidade e tempo ideais, os quatros músicos começaram por se apoiar na pauta para dar início à viagem. As execuções foram perfeitas, reproduzindo o quarteto sem a menor dificuldade a sonoridade exacta que se escuta na gravação. Mas os momentos de verdadeiro interesse surgiram quando os músicos se afastaram do livro e se aventuraram por vias alternativas, abrindo espaço para a curiosidade e criatividade. E foi precisamente nestes momentos que o binómio banda-público comungou de um sentido comum, caminhando lado a lado em via de invocação da tal intervenção divina, da tal sétima mão. Os músicos desfrutaram mais do que tocaram, e o público agradeceu.
No domínio da inspiração, este foi um concerto rico em dinâmicas e variações poéticas recitadas ao sabor do momento. “Fugitive Ritual, Selah”, por exemplo, foi tocado num registo lentificado, arrastado, quase minimal, sem nunca perder a sua faceta profunda e baladesca. Já “Lighthouse” abriu espaço para viçosas improvisações coletivas, sobrepondo-se a “Lift” de forma impercetível, de tal forma que foi impossível discernir o fim daquele tema e o começo deste. No campo da improvisação, Micah Tomas, cuja figura introvertida contrasta com a coolness dos seus companheiros de dreadlocks esvoaçantes, foi figura de proa. É um pianista genial, muitíssimo provocador e inquisitivo, confiante e ousado, sempre à busca de harmonizações alternativas e ângulos originais. Foi por ele, aliás, que passaram as improvisações mais interessantes do concerto, sem demérito para Wilkins, que brilha com naturalidade sempre que chamado a intervir, com o seu pós-bebop altamente inspirado no tocar de Charlie Parker e Benny Carter. Menos espaço para este tipo de tiradas teve Tyrone Allen, não obstante a sua incansável veia intervencionista. O contrabaixista foi o eixo, base e sustento do quarteto, sempre o segurando mesmo quando o destemido Sumbry, percussionista de recursos e amplitude dinâmica impressionantes, se aventurou por voos arrojados. De realce obrigatório é a generosidade de Wilkins, que amiúde se resguardou na retaguarda do placo, dando espaço para que os seus companheiros interpretassem as suas composições ad libitium. No final, perguntou-se novamente: “Tem apenas 24 anos, é espantoso! O que irá fazer daqui a 10 anos?” Pouco interessa o futuro. Não se trata de uma estrela em ascensão, antes de um músico que já brilha com plena intensidade. Immanuel Wilkins é o presente do jazz.