
Simbologia de uma resistência
Permitam-me que vos conte um pequeno facto que aprendi na minha recente viagem à Jordânia. Enquanto passeávamos pelo bairro artístico de Jabal al-Weibdeh, entrámos numa pequena loja que nos serviu de conveniente momento de repouso, cansados de subir e descer inúmeras escadarias e encostas sob o sol ardente de Amã. Nessa loja, por entre peças de artesanato, serigrafias, litografias, tote bags e outros artigos, um padrão emergia repetida mas sorrateiramente, plausível como podendo ser ou um motivo de design ou um excêntrico fetiche frutológico: melancias, melancias e mais melancias — estavam por toda a parte. Por instantes, lembrei-me da overdose que tive deste fruto quando vi O Sabor da Melancia, de Ming-liang Tsai, experiência da qual admito ter saído ligeiramente traumatizado. Mas, ao fim e ao cabo, sabia que havia mais para descobrir do que aquilo que via à primeira vista.
Apercebendo-se da nossa perplexidade em relação a dita imagem, aprontou-se a dona da loja a nos explicar que a melancia começara a ser usada pelos palestinianos como símbolo alternativo à bandeira, numa altura em que a deflagração desta foi proibida pelos israelitas. A razão para tal é simples e manifestou-se, depois da breve explicação da proprietária da loja, como óbvia: tanto a bandeira palestiniana como a melancia partilham exatamente as mesmas cores, nomeadamente o vermelho, preto, branco e verde. Fiquei inspirado, mas nada surpreso em confirmar novamente como um ato de opressão não resulta senão na criação de soluções engenhosas para o subverter. Sempre assim foi — e esperemos que sempre assim continue a ser.
Mais tarde, fui aprofundar o assunto sobre a origem deste símbolo associado à resistência palestina, e encontrei um elucidativo artigo publicado na revista Time, em cujo contexto histórico no qual surgiu a “semiótica da melancia” se encontra muitíssimo bem explicado:
The use of the watermelon as a Palestinian symbol is not new. It first emerged after the Six-Day War in 1967, when Israel seized control of the West Bank and Gaza, and annexed East Jerusalem. At the time, the Israeli government made public displays of the Palestinian flag a criminal offense in Gaza and the West Bank.
To circumvent the ban, Palestinians began using the watermelon because, when cut open, the fruit bears the national colors of the Palestinian flag—red, black, white, and green.
[…]
Israel lifted the ban on the Palestinian flag in 1993, as part of the Oslo Accords, which entailed mutual recognition by Israel and the Palestinian Liberation Organization and were the first formal agreements to try to resolve the decades-long Israeli-Palestinian conflict. The flag was accepted as representing the Palestinian Authority, which would administer Gaza and the West Bank.
A história da melancia e da sua relevância política e artística está, contudo, envolta em muito mais do que simples proibição por parte de Israel e de contrarreação do lado da Palestina. Na verdade, esta é uma história que envolve desde fecho de galerias de arte a várias detenções de artistas e ativistas. Para interessados em saber mais acerca desta história, recomendo a leitura de um artigo complementar, publicado na revista Hyperallergic, que pode ser encontrado aqui.
Tempos de “solidariedade” virtual
Em tempos de “solidariedade” virtual, a ironia é que não faltam formas de realmente ajudar quem mais precisa neste conflito. Porventura o problema destas formas de solidariedade efectivas é que não se exibem tão facilmente numa story de Instagram (à solidariedade show-off não faltam ideias imaginativas para o fazer). Recentemente, houve uma série de organizações que através das redes sociais apelaram a que a classe dos músicos cancelasse concertos como forma dar atenção a este conflito. Que músicos ou organizações diretamente relacionadas com a Palestina o façam, não me surpreende — a dor emocional e stress psicológico pela qual devem estar a passar é real. Contudo, surpreende-me que apenas o façam quando é feito um apelo para que tal aconteça. Que tipo de consciência é esta que só funciona em coletivo, como elemento integrante de uma suposta consciência coletiva virtual? Leia-se Bernhard:
A multidão é mesmo um fenómeno, o fenómeno do homem da multidão, que sempre me inquietou. Há um vício patológico que passa da multidão para qualquer pessoa, o vício de querer fazer parte dela, de ter de fazer parte dela, sabe… A aversão por fazer parte dela, e a mesma aversão por não fazer parte dela. Ora é uma aversão, ora é a outra… Mas as pessoas são sempre a multidão, a massa. Cada homem isolado é multidão, a massa, mesmo o que está lá no alto preso no meio de dois rochedos e que nunca chegou a sair desses rochedos, que ficou lá em cima para sempre… Sozinho, esse homem da multidão, esse homem da massa da multidão, sabe… É assustador estar no meio da multidão! Saber que se é isso: no meio da multidão!
E isto foi escrito durante os anos 60 — imagine-se o que não escreveria Bernhard agora. Adiante: particularmente absurdo pareceu-me que entidades como a Radio Alhara se juntassem a este apelo à greve, sem inicialmente adicionar nenhuma substância ao movimento. Para quem não conhece, a Radio Alhara é uma rádio online palestiniana que emite a partir de Belém, desde o seu lançamento em março de 2020. Sou ouvinte ocasional desta estação e aprecio bastante a sua grelha de programas. Pareceu-me, contudo, completamente irrelevante (enquanto ação isolada) promover um boicote a concertos, a ser feito por iniciativa dos próprios músicos, os quais deveriam, neste momento de “reflexão e luto”, abster-se de tocar de forma a criar “espaço para as vozes palestinianas se façam ouvir.” Esta greve tinha, então, como objetivo “transformar o silêncio num som de poder e numa voz contra o genocídio.”
A dinâmica insidiosa deste processo requer, felizmente, afastamento mínimo para que se lhe entenda os contornos perniciosos: primeiro, a ilusão de que a consciência coletiva virtual não está mais do que cristalizada em relação a este assunto, e que no lugar predileto das avalanches de informação há espaço para silêncio e reflexão; segundo, a perda desta oportunidade para gerar fundos monetários para ajuda humanitária à Palestina, os quais poderiam facilmente vir da doação de parte dos lucros gerados pelos concertos e festivais que foram cancelados; terceiro, a transferência da discussão do mundo “físico” para o mundo virtual, excluindo, assim, a possibilidade de inclusão de palestras e sessões de discussão em concertos e festivais que incentivassem à organização social em prol de um ativismo pragmático e consequente. Nota negativa.
Felizmente, nem tudo é tão negro como à partida parece: vários artistas, organizações e salas de espetáculos viram neste movimento uma oportunidade de angariação de fundos destinados a ajuda humanitária. Nota positiva. Uma lista muito bem selecionada, que tanto agrega exemplos de “solidariedade” Instagram como iniciativas de ajuda efetiva, foi feita pelo Resident Advisor. Sugiro que passem por lá e, quem sabe, adquiram um dos vários lançamentos cujas receitas revertem a favor do povo palestiniano.
Majazz Project / Palestine Sound Archive
Por fim, ainda em relação a este tema, quero chamar a atenção para um recente projeto de bastante valor que visa preservar o património musical palestiniano. Chama-se Majazz Project / Palestine Sound Archive, e é uma iniciativa de Mo’min Swaitat. O número de edições trazidas a público por este beduíno palestiniano ainda é reduzido, mas entre a música já lançada encontram-se várias edições históricas. Note-se que vários projetos semelhantes focados na preservação da música do médio oriente têm surgido nos últimos anos, sendo que o Syrian Cassette Archives é outra excelente iniciativa de referência obrigatória, que já oferece um catálogo extenso, pronto a ser explorado online. Num artigo escrito pelo próprio Swaitat, encontra-se um elucidativo parágrafo em que são reconstruídos os passos iniciais deste projeto:
In 2020, during the middle of the COVID-19 pandemic in Palestine, London-based artist Mo’min Swaitat discovered a large collection of cassette tapes and records from his youth in Jenin. Amongst them was Riad Awwad’s Intifada, the first album released in the first Intifada, containing revolutionary songs. It had been lost for years after the Israeli army confiscated all the copies they could find – 3,000 in all – and arrested Awwad. Inspired, Swaitat founded the Majazz Project, a record label that focuses on sampling, remixing, and reissuing vintage Palestinian and other Arabic cassettes.
Em relação ao The Intifada 1987 de Riad Awwad, as notas de apresentação do mesmo não poderiam ser mais esclarecedoras da sua relevância histórica:
Just one week after the outbreak of the First Intifada in 1987, Riad brought his sisters Hanan, Alia and Nariman together in their living room and began recording The Intifada album on equipment he had made himself. One of these was co-written with their friend, the acclaimed Palestinian writer Mahmoud Darwish.
The Intifada 1987 é, portanto, história. História de uma resistência inexorável, inabalável. Até que acabe a ocupação e o genocídio, que se repita o mantra:
From the river to the sea
Palestine will be free