Gosto muito de Gretchen Parlato. Lanço aqui o desafio para que me apresentem uma voz mais doce e melíflua. No jazz, tanto quanto sei, não a há. Enviem-me um e-mail, mandem-me mensagem privada, escrevam-me uma carta registada. Os portes ficam a meu cargo, não se preocupem. Estou realmente interessado em saber se estou errado. Isto porque existe o caos, e depois existe a voz de Parlato. E no meio disso estamos nós, tentando ordenar o inordenável, tentando sondar o sentido do absurdo. Esta dicotomia parece-me deliciosa: a contrapor-se ao caos, uma voz. Voz que arrancou os elementos fundamentais do plasma em que se encontravam totalmente indiferenciados para os transmutar em unidades plenamente coerentes e funcionais. Foi alquimia, de certeza. Bruxaria, magia negra. Distraídos, nem demos por isso… Afinal, os alquimistas são discretos e silenciosos, já nos havia dito Jorge Ben Jor. Mas continue-se o mito: essa foi a mesma voz que dessa síntese inicial conjugou depois os elementos para espalhar magia sob a forma de música, como nascente de água que brota de cratera de vulcão pronta a saciar bocas sedentas. Podem-me dizer que já estou para aqui a sonhar, e talvez tenham de facto razão. Mas como não o fazer, embalado pelo mel desta voz? Sonho como criança que dorme a meio da tarde no meio de uma multidão. E não há nada de mal nisso.

Há muito tempo que me apaixonei pela música de Gretchen Parlato. Se não estou falho de memória, esta paixão surgiu graças a um concerto que se encontrava inteiramente disponível no Youtube e que foi, entretanto, retirado. Recordo-me de o ouvir uma e outra vez, encantando-me invariavelmente com Parlato a cantar agora em inglês, depois em português do Brasil. Com Parlato a cantar sobre um bater de palmas sincopado que abria espaço para banhos de rio e flores no regaço. À falta de exemplo concreto, deixo-vos aqui uma outra atuação, parecida e também ela já “antiga”, fidedignamente representativa desse tempo:

Há, no entanto, uma razão pela qual tenho a certeza de que este não foi o concerto que me fez apaixonar pela voz de Parlato. E essa razão chama-se Magnus. Não se assustem, não falo de uma pessoa. Para que não haja dúvidas, permitam-me que reescreva corretamente: “Magnus”. Ficou mais claro? Creio que sim. Nesse tal concerto, a meio da atuação, Parlato chamou a palco uma criança para com ela cantar o refrão deste belíssimo tema. Magnus era o nome da criança, pois claro, e o refrão tinha sido criado pelo pequenote. Foi então com enorme surpresa e satisfação que reencontrei este tema em Flor, o mais recente álbum da cantora como líder de banda, lançado em 2021 pela Edition Records. Ora escutem só:

Um autêntico deleite, não é? Delícia das delícias. Música de sonhos e desejos. Baklava que transborda calda de açúcar. Espero que a metáfora da oscilação polarizada entre voz e caos se apresente agora clarividente. Porventura é um bocado pretensiosa, admito, mas não custa nada puxar pela imaginação. Tudo entra na engrenagem quando se escuta Parlato — a ideia é apenas essa.

Serviu esta breve introdução para situar (parte) da minha relação com a música de Parlato. Hoje, enquanto andava nas minhas deambulações em busca de nova música, tropecei num recente álbum também ele editado pela britânica Edition Records. Intitulado Lean in, este trabalho reúne em duo a cantora radicada em Nova Iorque e outro músico pelo qual nutro enorme admiração, o guitarrista Lionel Loueke. Bela surpresa! Fui ouvir imediatamente.

Estava já a par de certas influências similares que contaminavam o reportório de ambos — “Butterfly” de Herbie Hancock, por exemplo —, e o seguinte vídeo esclareceu-me que, afinal, a relação da dupla já vai para mais de duas décadas, remontando ao dia em que se conheceram na fila para uma audição no então Thelonious Monk Institute of Jazz, atualmente Herbie Hancock Institute of Jazz.

A proposta de Lean in é simples mas bonita. Ao longo de 12 temas em que Parlato e Loueke convidam o ouvinte a virar-se para si mesmo, juntam-se à dupla amigos e familiares que intensificam o clima de intimidade e partilha que emana do álbum (Mark Guiliana e Burniss Travis encontram-se entre os músicos participantes). Nele, Parlato traz a jogo tropicalidade e amplos recursos vocais; Loueke musicalidade da África Ocidental e genialidade nas cordas. Juntos envolvem-se em explorações criativas de padrões rítmicos intricados, motivos melódicos melífluos e harmonias revitalizantes. E ainda que haja um ou outro tema demasiado sentimentalão, no global o resultado é bastante agradável de se ouvir. Gostei especialmente de “Akwê”, “Okagbé Interlude”, “Astronauta”, “Muse”, “Nonvignon” e “Dù Wé Interlude”. Ah, e o The Colour and the Shape é destacadamente o álbum rock que mais ouvi na minha infância. Resulta claro que não resisti à versão de “Walking After You” que encerra o disco. Puro regalo.

If you walk out on me
I’m walking after you