Abençoem a criança, por favor. E, já agora, que o faça deus, caso não seja pedir em demasia. É que neste mundo há pouco espaço para gente errante, e quando o transvio é de maior, amiúde requer atenção divina. Que o diga a mãe de Billie Holiday quando, a meio de uma discussão com a filha, proferiu as palavras que se viriam a eternizar em canção — “God bless the child that’s got his own”.

Aparentemente a escaramuça começou por motivos pecuniários. Compreende-se perfeitamente: a intriga latente no vil metal é celebrada (diabolizada?) desde que o próprio vil metal existe. Estamos perante um exemplo notável de uma auto-problematização que não requer agentes externos: o problema do dinheiro é o próprio dinheiro, na origem, acto e dinâmica. Mas sejamos complacentes com Holiday, ou atire a primeira pedra quem não se sentiu petulante quando recebeu o primeiro salário. “Ai que prazer / Não cumprir um dever / Ter um livro para ler / E não o fazer!” Verdade, Pessoa, mas prazer ainda maior é ter e gastar do nosso:

Mama may have, papa may have
But God bless the child that’s got his own

Bem, dinheiro é dinheiro, é certo, e não há como não ficar deslumbrado perante esta recursiva declaração do óbvio como forma de enfatização de valor. Mas, acima de tudo, dinheiro é independência. Lady Day sabia-o tão bem quanto entendia todo o sobejo dispensável que o ouro arrasta na sua esteira:

Money, you’ve got lots of friends
They’re crowding around the door
When you’re gone and spending ends
They don’t come no more

Deixemo-nos, contudo, de exercícios de exegética e passemos sem mais delongas ao que verdadeiramente nos interessa. “God Bless The Child” é o meu tema favorito de Billie Holiday. Encontra-se destacado num pedestal em que apenas “Stormy Weather” entra sorrateiramente em dias de chuva. A bem da verdade, justiça lhe seja feita: todo o reportório da Lady Day é um primor. Primor que é bálsamo regenerador. Lembrou-no-lo, com a genialidade com que só ele o poderia ter feito, Gil Scott-Heron:

Could you call on Lady Day?
Could you call on John Coltrane?
Now, ‘cause they’ll, they’ll wash your troubles
Your troubles, your troubles, your troubles away!

Não há como escapar à força do blues e da soul da voz de Billie. Entra-nos corpo adentro sem pedir licença. Revira-nos as entranhas para simultaneamente nos afagar o coração. Voz sagrada. Voz profana. Tal qual a vaca que Gal cantou e Caetano escreveu. Profana mas de orgãos divinos.

“God Bless The Child” foi co-escrita pela própria Billie e por Arthur Herzog Jr., em 1939, gravada pela primeira vez a 9 de maio de 1941, e lançada pela Okeh Records um ano depois. A gravação original está longe de carregar o peso de versões ulteriores, mas ainda assim pede por escuta atenta:

A ideia para reunir nesta lista as minhas 5 interpretações favoritas de “God Bless the Child” surgiu depois de ter ouvido a sua primeira entrada. A Dark Entries Records acabava de lançar um volume de inéditos de Sylvester que, em 1970, gravara em condições duvidosas um conjunto de versões de temas de early jazz, blues e gospel dos anos 30 e 40. Todo o disco tem uma aura de exotismo decadente que ressoou profundamente comigo, e não consegui não sentir que Sylvester entendeu perfeitamente a essência de “God Bless the Child”.

O falsete dolente de Sylvester fez-me então recuar até à adolescência para revisitar as tardes passadas a ouvir o canto adocicado de Nancy Blossom a interpretar a mesma canção. Os Fifty Foot Hose são um “segredo” que guardo na minha caixinha de pedras preciosas desde a adolescência, essencialmente porque sintetizam tudo o que musicalmente me fascinava naquela altura: rock — do bom, e de preferência psicadélico e amador, com garage e psych à mistura no nome, e quando não totalmente rockabilly e psychobilly — e experimentação — ideias de electrónica avant-garde? instrumentos de electrónica feitos por Cork Marcheschi? sim, por favor!

Daí ao expressionismo abstracto de Eric Dolphy ou ao abraço jazzístico ultra-reconfortante de Kenny Burrell foi um ápice. A mente realmente não para quando lhe soltamos as rédeas e a deixamos livre, a cavalgar. Ah! E admito que lembrar-me da versão de Keith Jarrett já requereu um pouco mais de esforço — estava esquecida num lugar escuro e recôndito do meu cérebro, o qual foi prontamente iluminado logo que a música começou. Não há como falhar quando se toca acompanhado por Gary Peacock e Jack DeJohnette.

Reitero: abençoem a criança, por favor! E de preferência de todas as formas e feitios. Eu cá estarei para agradecer.

Sylvester - God Bless the Child

Fifty Foot Hose - God Bless the Child

Eric Dolphy - God Bless the Child

Kenny Burrell - God Bless the Child

Keith Jarrett Trio - God Bless the Child