
Hoje a visita é de médico (bem, pelo menos, vou tentar) e apenas para deixar neste espaço registado um tríptico de lançamentos recentes que merecem ser ouvidos. Acrescenta-lhes importância o facto de esteticamente serem álbuns que na sua génese brotam do domínio da música ambiente, género que, por si só, quando abordado como autossuficiente, i.e., como objeto que compreende o princípio e o fim em si mesmo, tem nos últimos tempos posto a descoberto inúmeras fragilidades.
Note-se que estas são fraquezas trazidas pelo tempo e que se prendem essencialmente ao âmbito da originalidade e criatividade. Não há muito para inventar num género que já foi visto e revisto, passado e repassado por algumas das maiores cabeças que pisaram este mundo. Ainda está para chegar o messias que verá os novos horizontes desta música lá do alto do monte Nebo. Nesse dia, arrepender-me-ei de ter escrito estas linhas, mas tento cada vez mais não ter grandes pruridos em estar enganado, principalmente se o reconhecimento do erro se der em prol da verdade.
A música ambiente do presente está vetusta, defunta. O velório ainda não lhe foi feito por respeito ao seu passado histórico. Mas talvez esteja eu por aqui a ser um pouco injusto: o velório ainda não ocorreu porque, na verdade, a música ambiente adaptou-se e começou a dialogar com o resto do ecossistema musical. Não há grandes segredos nem teorias complicadas quando se trata de compreender as chances de sobrevivência de um género musical. A teoria evolucionista da música é estruturalmente análoga à teoria evolucionista de Darwin. Estamos perante um homomorfismo (isomorfismo, talvez? teria de pensar melhor). Relembremo-nos, para efeitos de argumentação, de uma das ideias fundamentais do Darwinismo:
It is not the strongest of the species that survives, nor the most intelligent that survives. It is the one that is the most adaptable to change.
Adaptabilidade, flexibilidade. Essa é a chave para o sucesso de uma espécie, tanto quanto o é para a sobrevivência de um género musical. A porosidade do jazz, por exemplo, explica-lhe a longevidade. Uma música hermética é uma música destinada a perecer assim que as suas possibilidades se esgotem. Pense-se, por exemplo, nos sub-sub-sub-géneros, que, devido a uma especificidade desmesurada, rapidamente consomem os seus ciclos de vida, gradualmente definhando em relevância até se tornarem meros artefactos históricos.
Os três álbuns que aqui quero deixar registados são, portanto, naturalmente, casos em que a música ambiente se abriu ao mundo sem temores nem preconceitos. E, quando assim o é, os resultados são por norma bastante positivos. São uma porta de esperança e um elo com o futuro imediato. Poderão não agradar a todos, mas impossível será não lhes reconhecer a autenticidade.
Só se existe enquanto o contínuo for perpétuo, e o descontínuo puro artifício teórico.
Marry Lattimore — Goodbye, Hotel Arkada
O primeiro trabalho que gostaria de apresentar é da autoria da harpista e compositora norte-americana Marry Lattimore. Goodbye, Hotel Arkada foi lançado no início do mês pela Ghostly International. Este é um álbum sobre movimento e mudança, inconstância e mutabilidade, que funde improvisação com escrita musical. Lê-se em notas de apresentação um resumo lacónico mas altamente explicativo do que por aqui se escuta:
Six sprawling pieces shaped by change; nothing will ever be the same, and here, the artist, evolving in synthesis, celebrates and mourns the tragedy and beauty of the ephemeral, all that is lived and lost to time
Esta é, portanto, música ambiente progressiva, que se constrói camada a camada, roçando em várias ocasiões com a indie e a pop. A flutuabilidade pairante induz a uma levitação contínua pelos sonhos e memórias de Marry, harpista exímia e escultora musical aprimorada de paisagens oníricas para as quais somos sugados, apenas saindo quando o álbum termina. Não é bem para o Hotel Arkada, na Croácia, que somos enviados… antes para um universo sónico que se desenvolve lenta e gradualmente, como paisagem que se afasta de um corpo em movimento. Movimento circular, atenção… as narrativas não são propriamente lineares, e alimentam-se do seu passado recente, como numa infinita recursão fractal pelos meandros da memória. Delicioso — e com convidados de luxo! É ler-lhes os nomes e ouvir o álbum com atenção.
Laurel Halo — Atlas
A cartografia da música ambiente do presente que ainda assume um estado relativamente pouco mutado em relação à sua conceção nos anos 60 e 70 é-nos, em Atlas, traçada por Laurel Halo. Esta é uma ideia de música ambiente que sobrevive graças ao superlativo sentido estético e gosto musical da produtora norte-americana, que também sabe rodear-se de gente que se encontra a trilhar caminhos paralelos mas consigo interligados, como Bendik Giske, Lucy Railton e James Underwood.
A experiência sinestética final de Atlas é sintetizada com recurso a texturas digitais e instrumentos acústicos, sendo capaz de pôr em movimento até mentes em repouso, sujeitas à maior inércia. Preparem-se, pois, para uma submersão profunda num ambiente aquático em que se escutam ecos longínquos, fragmentos melódicos, drones vestigiais, mantos ondulatórios, eletrónica etérea e ideias proto-orquestrais. É tudo muito wholesome e relaxante. Música em permanente estado de latência de sentido, sentido esse que se encontra em contínua gestação, sempre quase, quase a manifestar-se para que lhe captemos a essência. Tal nunca acontece, e talvez seja esse precisamente essa epoché o segredo da fórmula de Halo. Um álbum que pede mesmo por um fechar de olhos para embalar a viagem.
Oneohtrix Point Never — Again
Por fim, deixo aqui também o último avanço de Daniel Lopatin aka Oneohtrix Point Never. Se Oneohtrix Point Never começou a sua carreira totalmente no seio da música ambiente, já há muito que este género apenas desponta no trabalho do produtor de Brooklyn como mera cicatriz primordial. E Again não rompe com esta tendência, assumindo a forma de tratado demonológico, coligido a partir de partes retalhadas, provenientes de lugar carregados de negrume e peçanha, futurismo e fantasia, ilusão e paranoia.
Gravações de campos, sortidos de samples, texturas eletroacústicas, vozes processadas, batidas industriais e motivos cyberpunk servem então como matéria-prima para colagens sonoras que ganham uma coerência surpreendente, considerando a disjunção dos fragmentos iniciais.
Again é, pois, produto de uma mente hipercriativa e em permanente ebulição. Sem dúvida que reitera o lugar e importância que Oneohtrix Point Never tem no panorama musical da contemporaneidade.
P.S.: Esqueçam a visita de médico inicialmente prometida.