Cadernos de esquissos. Registos de sensações. Pergaminhos de sombras. Pensamentos subterrâneos. Alegorias inacabadas. Apontamentos de ideias soltas. Mini-ensaios, livres e fugazes. Pós-haikus absolvidos de estrutura. Explorações noéticas de imagens musicais. Impressões mítico-poéticas sobre som e forma. Em Cadernos do Underground, encontra-se em foco música de várias dimensões e polimorfias. Sem a elevação de Fiódor Dostoiévski nem a analítica de Theodor Adorno, é como se László Krasznahorkai ou Thomas Bernhard escrevessem ao ritmo de Jack Kerouac. Cadernos do Underground, uma coluna sobre heterodoxia musical.
Hugo Carvalhais – Ascetica (Clean Feed Records, 2022)
Ascetica é o novo álbum do contrabaixista e compositor Hugo Carvalhais, que com este trabalho põe um ponto final a um hiato de 7 anos no que toca a lançamentos em nome próprio. E em boa hora que o faz, pois Ascetica é um preciosíssimo trabalho, jazz verdadeiramente original, retirado das profundezas do ser, daquele que pensa, se surpreende, se questiona e se encanta pelos mistérios onto-cosmológicos da realidade. Jazz que também surge de uma inquietação em relação às subtilizas da matéria que nos constitui enquanto Humanos e que é, por isso, parte constituinte desta experiência partilhada, antropológica, necessariamente, mas, acima de tudo, teo-antropológica, pois é nos momentos de transcendência, nos quais o Homem se lança em direcção ao mistério e ao desconhecido, que toma contacto com as possibilidades sobre-humanas de sua existência, rapidamente as integrando na sua estrutura como parte constituinte de uma formulação que até então não as continha, pois ditas possibilidades pertenciam ao domínio do transcendental. E é em exploração labiríntica, curiosa e atenta destas nuances da experiência humana, que Hugo Carvalhais concebe este disco – um dos melhores portugueses que ouvi em 2022 -, no qual o músico e compositor, em jeito de ensaística musical, se debruça sobre os fugazes mas marcantes momentos em que algo de inesperado, inexplicável, ou inefável ocorre, sejam estes momentos kairóticos ou instantes de pura mágica existencial.
Musicalmente, Ascetica é tudo menos austero. Nele encontramos elementos da música de várias eras, e.g., elementos com origem na música erudita, como é o caso dos órgãos usados, que remetem para uma época barroca e para uma dimensão religiosa em que a música é o elo de ligação entre o imanente e o transcendente. Ademais, este plano pós-renascentista é perpendicularmente intersectado por uma contemporaneidade musical que vive de sintetizadores e eléctronica, traços sintéticos que limam as arestas de um core musical acústico, composto pelos tradicionais sopros, cordas e percussão. A acompanhar Hugo Carvalhais, que toca contrabaixo e eléctronica, encontram-se Emile Parisien, no saxofone soprano, Liudas Mockunas, no saxofone tenor e clarinete, Fábio Almeida, no saxofone alto e flauta, Gabriel Pinto, no piano, órgão e sintetizador, e Mário Costa, na bateria. Um septeto que enche as medidas mesmo aos ouvidos mais exigentes e que conforta qualquer ânsia existencial. De audição múltipla obrigatória.
Quartet Exquis – Da Multiplicidade do Vácuo (CityStream, 2021)
Da Multiplicidade do Vácuo é um trabalho da autoria do Quartet Exquis, formação constituída por AnnaMarie Ignarro (clarinete), Noel Taylor (clarinete baixo), Helena Espvall (violoncelo), e João Madeira (contrabaixo). O álbum surgiu da ideia de João Madeira de explorar os processos subjacentes e resultados da aplicação de um cadáver esquisito à improvisação musical, este que é um jogo de palavras surrealista, surgido em meados dos anos 20 do século XX, em que cada participante acrescenta uma palavra a uma frase sem ter conhecimento das palavras que já lhe foram adicionados anteriormente. Este método de improvisação já havia sido experimentado por João Madeira em Imaginary Folk Songs, álbum que o contrabaixista gravou, tal como este Da Multiplicidade do Vácuo, durante o primeiro confinamento de 2020, com Paulo Chagas e Paulo Duarte.
Da Multiplicidade do Vácuo foi gravado impondo directrizes orientadoras a cada tema, com os músicos a tocarem de forma completamente independente, sem qualquer conhecimento do que os restantes improvisadores se encontravam a fazer. Nalgumas faixas, certas variáveis foram mantidas constantes, tais como, por exemplo, as batidas por minuto ou a região tonal, esta mantida aproximadamente fixa recorrendo a solos de cada um dos membros do quarteto, solos esses que foram depois usados como bases sobre as quais os restantes músicos improvisaram. Noutra faixa, foi pré-determinada uma estrutura do tipo ABA com vista a criar um tema que alternasse entre tempo rápido (A) e tempo lento (B). Noutra faixa, ainda, foi acordada a inexistência de qualquer estrutura pré-definida, com a duração total do tema a ser o único parâmetro restritivo. As improvisações individuais foram, por isso, tocadas de forma totalmente livre e espontânea, sem grilhões rítmicos, melódicos ou harmónicos.
O título Da Multiplicidade do Vácuo advém do nome de uma tela de Cruzeiro de Seixas, poeta e pintor português que faleceu no final de 2020, sendo este disco uma espécie de homenagem à sua obra. Os restantes títulos dos temas advêm também eles de obras da autoria de artistas surrealistas, havendo referências tanto a Frida Kahlo (“Raíces”) como a Marcel Duchamp (“En prévision du bras cassé”), entre outros. Os resultados musicais são surpreendentes, principalmente tendo em conta o processo subjacente à gravação do disco. A sonoridade é límpida e elegante, com momentos de miraculosidade musical em que surgem pequenas coincidências rítmicas, harmónicas e melódicas, que nos fazem imaginar que o quarteto partilhou um qualquer tipo de comunicação não-verbal, telepática, aquando da feitura deste disco, porventura advinda do conhecimento de uma linguagem comum de improvisação, subconsciente, quiçá, que permitiu, mesmo a distancia, antever os caminhos mais prováveis de serem percorridos neste acto de composição espontâneo e não-sincrónico. Improvisação não-idiomática baseada em metodologia heterodoxa absolutamente essencial para interessados em música criativa.
Chamber 4 – Dawn To Dusk (Jazz ao Centro Club Records / TrioCollectif, 2021)
Os Chamber 4 são um quarteto de música de câmara formado pelos irmãos franceses Théo e Valentin Ceccaldi, no violino e violoncelo, respectivamente, e por dois improvisadores portugueses, o trompetista Luís Vicente e o guitarrista Marcelo dos Reis. Dawn to Dusk, que foi editado através de uma parceira entre a Jazz ao Centro Clube Records e o TrioCollectif, resulta de uma gravação realizada na Antiga Igreja do Convento S. Francisco, em Coimbra, por ocasião do festival Jazz ao Centro de 2020. É já o terceiro disco do grupo, que em 2015 havia lançado um álbum homónimo pela etiqueta britância FMR Records, e em 2017 o disco City of Light pela Clean Feed.
Dawn to Dusk é constituído por uma suite dividida em três andamentos, análogos ao amanhecer, ao decorrer do dia, e ao anoitecer, todas eles caracterizados por dinâmicas distintas, uns mais intensos do que outros, mas que exibem sempre uma sensibilidade e beleza desconcertantes. Ao ouvirmo-la, sentimo-nos a flutuar sobre a realidade, num estado artificial, quasi-onírico, a meio-caminho entre o real e o imaginário. Deliciamo-nos, portanto, quando por entre texturas baseadas em geometrias complexas, que tanto vogam marés plácidas como turbulentas, surgem reminiscências de melodias distantes, ululantes, que ora vêm das cordas ora do trompete, e que fortalecem essa sensação de se estar a sonhar acordado. Pura delícia. Elixir dos sonhos.