Coreto – A Tribo

O Coreto, grupo fundado no seio da Porta Jazz e liderado por João Pedro Brandão, regressou, no passado 28 de Setembro, aos discos com o lançamento de mais um álbum, intitulado A Tribo, cunhado, claro está, com o selo do Carimbo Porta-Jazz. Este é um grupo especial por se basear numa formação em dodecateto com uma tipologia que poder-se-ia considerar algo como uma “pequena” brass band contemporânea, aumentada por uma matriz adicional, que é essencialmente harmónica, através do piano e da guitarra. Além de Brandão (saxofone alto e flauta) – que ficou responsável pelas composições -, o Coreto é formado por José Pedro Coelho (saxofone tenor), Hugo Ciríaco (saxofone tenor), Rui Teixeira (saxofone barítono), Ricardo Formoso (trompete, fliscorne), Susana Santos Silva (trompete), Daniel Dias (trombone, voz), Andreia Santos (trombone), AP (guitarra), Hugo Raro (piano), José Carlos Barbosa (contrabaixo) e José Marrucho (bateria). De todos eles temos ouvidos inúmeros trabalhos paralelos – nos quais participaram como líderes, compositores ou instrumentistas -, que variam em estilo e registo, tanto abraçando a música livre, não idiomática, como o jazz dito tradicional ou mainstream. A experiência musical cumulativa efectivada num ensemble como este é, portanto, avassaladora, aspecto que amplia o seu potencial musical não apenas pela dimensão quantitativa do mesmo, mas sobretudo pela sua irrefutável componente qualitativa. Estes factos, aliados ao detalhe do Coreto nunca ter estado tanto tempo sem lançar um disco (quatro anos, para se ser preciso), são, assim, ingredientes que deixam qualquer um faminto por perceber qual a direcção e sentido pelos quais o dodecateto optou neste novo disco. Descodificar a sua actual forma e essência a priori é, no entanto, acto fadado a falhar, pois tal como Rui Teixeira esclarece em três dos versos que servem de apresentação a este trabalho: 

“A tribo anuncia-se, 
A tribo evolui, 
A tribo estende, distende e pretende continuar. 
[…]” 

É, portanto, este devir que funda as possibilidades dinâmicas e as efectiva na presente realidade do Coreto, grupo em perene evolução e que, com o lançamento de A Tribo, soma já o seu quinto álbum, sendo este sucessor de ALJAMIA (2012), Mergulho (2014), Sem Chão – ao vivo na Porta Jazz (2015), Analog (2017). Evidente parece ser que a tribo está mais ousada que nunca, tendência que já se tinha vindo a acentuar nos últimos discos. Deste modo, as composições apresentadas, apesar de continuarem a reter os sopros como a “cola” harmónica dos temas, também lhes conferem uma liberdade aumentada, sendo precisamente eles os maiores disruptores deste tecido. Escutam-se mais rompimentos com o “tradicional” funcionamento das formações desta dimensão, os quais são aqui consumados através de variáveis registos musicais e experimentação conjunta, estando estes momentos suavemente justapostos à apresentação dos motivos agregadores dos temas. Estão, assim, reunidos os elementos essenciais para uma viagem que se quer dinâmica mas direcionada, inquisitiva mas esclarecedora.  

Em “Brotando da Terra”, o Coreto lentamente germina recorrendo exactamente ao tipo de orquestração polifónica da secção de metais que tanto o caracteriza, orquestração essa que se vai encorpando e adensando até dar espaço ao solo de Susana Santos Silva, pintado sob tela fecundada pelo quarteto formado por guitarra, piano, contrabaixo e bateria. “A Jornada”, após uma introdução plena de vitalidade, abre para um solo de Brandão, protagonizado com e num registo próximo do free jazz. Segue-se uma revisitação ao motivo de partida, cenas de tensão e alarme, terminando, por fim, a jornada por entre murmúrios e lamentos provenientes dos trombones de Andreia Santos e Daniel Dias. “Celebração” é o tema mais colorido do disco, consistindo numa espécie de hard bop orquestral, todo ele coolness e bem-estar. O Coreto entra em rota de colisão interna em “Conflito”, tema maioritariamente baseado em improvisação e no qual o grupo apenas se reúne para uma breve discussão a meio caminho que gradualmente aumenta em intensidade. “Faina” é uma work song e se o jazz tivesse nascido nas zonas agrícolas do norte de Portugal e não em Nova Orleães? –, industriosa e compassada, à qual é emprestada voz para os típicos shouts humanizantes, acabando em clima de dissidência, com breves mas deliciosas referências a Coltrane a emergirem no solo de Ciríaco. Já “Contemplação” começa num ténue e delicado jogo de forças com a eufonia, desenvolvendo-se posteriormente através de uma série de imagens abstractas, criadas com recurso a sons funcionais que dão forma a um filme sonoro de carácter textural, geométrico e fractal. Por fim, “Lar”, uma das pérolas reconfortantes deste álbum, faz o grupo regressar a casa depois de um longo périplo, transmitindo tanto a serenidade do conforto como o regozijo do triunfo. 

Sendo o imaginário de uma tribo muitas vezes de carácter mítico, ou pelo menos baseado numa racionalidade muito própria, é fascinante que esta em específico – leia-se o Coreto – consiga veicular as suas ideias de forma tão impactante. Não sendo todas elas pronta e necessariamente inteligíveis de um ponto de vista técnico ou simbólico, são, sem sombra de dúvida, verdadeiramente tocantes de um ponto de vista emocional. E isso é sinal de que um certo tipo de comunhão foi realmente estabelecido, comunhão essa que ultrapassa os limites da própria tribo, sendo comungada por todos os envolvidos – músicos e ouvintes – num ritual tão importante como necessário. Um disco essencial que totaliza e materializa o ethos Porta Jazz: música de excelência feita por todos e para todos. Maravilha!, diria eu.