José Lencastre / Jorge Nuno / Felipe Zenícola / João Valinho – Anthropic Neglect

Não tenho a certeza se, no momento do juízo final, seremos julgados pelas nossas negligências antrópicas. Em relação a este assunto, prefiro sentar-me confortavelmente com Lutero e acreditar de que a salvação só virá se dela abdicarmos. Não obstante, certeza tenho de que em Anthropic Neglect – uma edição da Clean Feed Records – somos transportados por uma viagem na qual visitamos tanto o céu como o inferno, passando igualmente longos momentos num limbo purgatorial situado nas proximidades de um ponto crítico no qual a mínima perturbação leva a uma mudança de fase. E é por estas coordenadas que o quarteto formado por José Lencastre (saxofone alto e tenor), Jorge Nuno (guitarra), Felipe Zenícola (baixo) e João Valinho (bateria) nos guia ao longo de três “conceitos”, cada um dando origem a um distinto tema. Todos eles são extensos, havendo espaço para que os músicos construam lenta e calmamente, obedecendo religiosamente à lei da paciência e revelando uma estoica e inabalável resistência a clímaces e deslumbramentos. Aliás, este é um trabalho que, devido a essa abordagem, interessantemente apresenta reminiscências de géneros que, à partida, não associaríamos de forma imediata a alguns dos músicos deste grupo, com o krautrock, o drone, o dark ambient, o post-jazz e, até mesmo, o stoner a surgirem como sonoridades das quais se sentem alguns vestígios. Disto isto, o núcleo da génese musical aqui apresentada é claramente free jazz com uma forte componente espiritual e psicadélica. A estrutura geral dos temas é também evidente: a dupla rítmico-percussiva Zenícola-Valinho desenha esquissos a preto e branco que são coloridos pela dupla Lencastre-Jorge Nuno, os principais interlocutores desta viagem.  

“Concept 1” é o preâmbulo deste ensaio. São cerca de treze minutos que se desenvolvem de modo arrastado e lânguido. As primeiras pistas que nos são dadas sobre a temática da faixa são, curiosamente, de coerência melódica, vindas por parte de Lencastre. Dita ordem, contudo, rapidamente se dissolve com a entrada de Zenícola e Valinho em cena, elementos que, apesar de claramente não conduzirem o leme do ensemble no que toca ao detalhe e à filigrana, definem a ambiência e a tela sobre a qual este pinta. Baixo e bateria são, portanto, elementos maioritariamente de suporte. Talvez dita descrição seja mais precisa para o caso de Zenícola, que neste tema se remete a um eterno legato com poucos desvios tonais e rítmicos, mantendo a sua rota constante em direcção aos limites do desconhecido. Não é um papel propriamente virtuoso, decerto, mas obviamente funcional. Já Valinho é bastante mais interventivo, tocando com dinâmica e subtileza formas e geometrias que são o acompanhamento perfeito para que Jorge Nuno expresse as suas ideias impressionistas, imagéticas, atonais e reminiscentes de algo do qual o verdadeiro significado sempre nos escapa. Maioritariamente opacas, estas são, porém, imagens que se tornam inteligíveis e ganham definição quando se entrelaçam com o sopro de Lencastre. Escute-se, por exemplo, o ostinato em uníssono que une os dois músicos antes da coda, momento que é perpetuado ao longo de várias repetições que são adornadas com ligeiras mutações a gosto. Este é um segmento em que o nosso espírito é, a pouco e pouco, elevado: já nos esquecemos de como começámos; encontramo-nos, agora, a levitar no tecido sideral; somos nada mais que uma partícula à mercê do incerto destino do universo. É então que a entropia aumenta, desordenando as interacções entre o grupo, que termina o tema de forma caótica, intensa, distorcida e amorfa. 

“Concept 2” abre (e assim segue até ao final) com Zenícola a tocar o baixo num quasi-tremolo monotonal. Este pano de fundo industrial é acompanhado de forma exímia por Valinho, que restringe o seu comping praticamente aos pratos e à tarola. Ficaríamos por aqui, numa proto estrutura inacabada, não surgisse Jorge Nuno que, com a guitarra cabalmente imbuída em efeitos, dá forma maioritariamente a texturas e psicadelismos disformes. Além disso, em certas partes, toca uma espécie de arpejos quase atonais, noutras lancinantes fraseados em staccato, havendo ainda espaço para riffs carregados de negrume. Lencastre vai pontuando a composição em perene oscilação entre frases melódicas e divagações cromáticas de natureza pouca orgânica: são estas curtas e contundentes, muitas vezes terminando de forma abrupta, deixando-nos na expectativa e em suspenso. A forma interessante como esta locomotiva maquinal é travada é o ponto alto (e final) do tema, que se resolve num delírio caleidoscópico repleto de agressividade e cacofonia. 

Por fim, o terceiro conceito – “Concept 3” – arrecada o estatuto de meu favorito: inicia-se com um quente e redondo solo de Lencastre de encher a alma, belo e emotivo, que vai perdendo definição melódica à medida que a guitarra de Jorge Nuno, com sensível subtiliza, emerge do silêncio, facto que propulsiona o saxofone a tornar-se notoriamente mais abstracto e circular, ora aventurando-se por fraseados oscilatórios à lá Evan Parker ora por ásperos ataques Colemanianos. Dita abstração melódica abre espaço para que os restantes elementos do quarteto apareçam em cena. A fórmula que se segue é semelhante à dos anteriores conceitos: Zenícola toca o baixo de forma monótona, criando uma atmosfera repetitiva e hipnotizante; Valinho apresenta-se incansável no seu kit, a circular com óbvia fluidez pelos pratos, timbalões e tarola; Jorge Nuno adensa o clima, explorando linhas melódicas que trazem consigo ventos psicadélicos. O quarteto segue nesta linha em direcção ao cume, que é atingido com um breakdown no qual Valinho, por momentos, veste a roupagem de baterista de doom; Lencastre grita guturalmente, fundindo a garganta e o saxofone num só instrumento; e Jorge Nuno atinge o seu registo mais agudo, como que epicamente celebrando o feito conseguido. A descida à base é feita em tempo lento, com Lencastre a investigar escalas orientais e Jorge Nuno a embalar-se num inexorável ostinato. O tema termina, por fim, com leveza e plenitude, como se o nirvana tivesse sido atingido nesta espécie de longa meditação. Simplesmente fantástico… 

Anthropic Neglect é um excelente álbum de free jazz psicadélico. Uma viagem recomendada e que certamente surpreenderá aqueles que nela embarcarem.