Setola di Maiale – Setoladimaiale Unit & Evan Parker / Ombak Trio / Jars

Setoladimaiale Unit & Evan Parker – Live At Angelica 2018

Foi como parte integrante do AngelicA – Festival Internazionale di Musica #28 – que a 26 de Maio de 2018 ocorreu uma actuação que de forma simples, directa, sintética, mas não redutora, se pode classificar apenas através do recurso a um adjectivo: épica. O motivo: a editora Setola di Maiale celebrava o seu vigésimo quinto aniversário, um momento de grande importância para a chancela que no seu catálogo agrega álbuns nos quais participaram vários membros do escol da música livre e experimental – maioritariamente, mas não exclusivamente – com raízes em Itália. Desta feita, e como forma de homenagear e fazer jus aos vinte e cinco anos de actividade do selo italiano, o Setoladimaiale Unit – um ensemble “aberto”, no sentido em que os seus membros não são fixos – juntou-se a uma autêntica lenda-viva da improvisação livre, Evan Parker.  

A importância do bristoliano na cena experimental europeia é tão profunda quanto as raízes da mesma. Parker foi um dos porta-estandarte da improvisação livre na Europa e, a par do já falecido Derek Bailey, foi um dos investigadores que na década de 70 transportou a música de improvisação britânica além fronteiras, fazendo-a competir, e até colaborar, principalmente com os improvisadores da Alemanha, o epicentro da revolução experimental no velho continente, aí encabeçada por músicos como Peter Brötzmann ou Alexander von Schlippenbach, para nomear apenas dois entre vários pilares fundamentais deste movimento. Esta junção é, portanto, uma afirmação da personalidade artística e musical da Setola di Maiale, uma editora que, segundo as contundentes, mas acertadas palavras do seu fundador, Stefano Giust, “permanece e persistente como uma utopia comercial pura” num mundo amoral e acultural danificado pelo “crescente neoliberalismo”. 

Para este concerto – que ocorreu no Teatro San Leonardo em Bolonha, Itália -, o Setoladimaiale Unit contou com sete elementos: Marco Colonna (Clarinete Bb, C, alto e baixo), Martin Mayes (trompa e trompa alpina), Patrizia Oliva (voz e electrónica), Alberto Novello (electrónica analógica), Giorgio Pacorig (piano), Michele Anelli (contrabaixo) e Stefano Giust (percussão). Além disso, unicamente para propósitos introdutórios, a este septeto juntarem-se o compositor americano Philip Corner e a sua esposa, coreógrafa e dançarina, Phoebe Neville, que tocaram gongas. Deste modo, a parte nuclear do concerto foi tocada por um octeto no qual Evan Parker se apresenta ao comando dos saxofones soprano e tenor.  

São quatro (excluíndo a curta introdução) as sessões de improvisação totalmente livre deste registo, totalizando cerca de 70 minutos. O entrosamento e comunicação do grupo é brilhante: amiúde ouvem-se perguntas e respostas, entrelaçamentos intencionais, harmonizações inesperadas, complementos rítmicos, passagens de testemunho, silêncios de certos elementos que criam dinâmica, consonâncias e dissonâncias melódicas. O papel de cala elemento é sabido, mesmo que apenas tenham sido sugeridas em antemão “vagas indicações poéticas” para o decorrer do concerto. O som de Parker é caracterizada pelo seu estridente e incansável tocar que faz uso constante da respiração circular, à qual recorre para soprar as contínuas e circulares frases (quase sempre) atonais que tanto o caracterizam. A percussão de Giust é muito pouco dada a aspectos rítmicos, preterindo a formação de uma sólida matriz rítmica pela criação de uma sempre presente imagética textual. Pacorig é um autêntico pianista de free jazz, ora com uma génese Ceciliana que emerge sempre que assalta o piano com percussivas pancadas, ora com uma génese Bleyiana que explora nuances dissonantes de forma incessante. A voz de Patrizia Oliva é tão angelical como fantasmagórica, sendo um dos meus elementos favoritos do ensemble, pois sempre que intervém eleva o clima da actuação para um patamar superior, quase coral e transcendental. Além disso, tanto a sua electrónica com a de Alberto Novello trazem uma dimensão contemporânea e eletroacústica ao ensemble, também este um domínio bastante explorado na editora italiana, que aqui se vê representado por esta dupla. Colonna e Mayes acompanham muitíssimo bem os restantes elementos: são bem mais melodiosos que Parker, contrastando o tocar deste em forma e atomicidade, e trazem igualmente frescos ventos tímbricos ao ensemble. Por fim, Anneli é discreto, mas agressivo na abordagem ao contrabaixo, quase sempre tocando-o em pizzicato e staccato. Em suma: Setoladiamaiale Unit & Evan Parker, Live at Angelica 2018, é um documento essencial da improvisação livre europeia – recomendadíssimo, se ainda for necessário referir. 

Ombak Trio – Through Eons To Now

É de colorações e tonalidades outonais que os Ombak Trio revestem este Through Eons to Now, um interessante disco de estreia que vem pressagiar como promissora a colaboração entre os residentes em Itália Stefano Giust (bateria e pratos) e Giovanni Maier (violoncelo), e o esloveno Cene Resnik (saxofones tenor e soprano). A música que o trio toca é free jazz puro e duro, livremente improvisado e com traços de ensaio literário que nunca se define totalmente, talvez devido ao facto de muita da investigação sónica deste disco ser dedicada a momentos transitórios: se num segundo sentimos vibrações melancólicas, no seguinte somos atingidos por revoltadas e enérgicas divagações que nos afastam de qualquer estado contemplativo, incitando-nos à acção e à descoberta. Ditas alternâncias entre distintos humores são ainda exacerbadas pelo tocar de cada um dos elementos: Resnik assume-se como o elemento melódico do grupo, portador de uma sonoridade quente e expressiva, com um vocabulário profundamente jazzístico, mas que também sabe apalpar terrenos não-idiomáticos; o violencelo de Maier é frio, impessoal, ora tocado em arco ora com os dedos, muitas vezes soando e fazendo-se passar por contrabaixo; a percussão de Giust é curiosa pela inquietude que expressa, traduzida numa exaustiva busca pelo acompanhamento necessário, encontrando-se sempre presente, mas assumindo amiúde um papel secundário, preterindo o protagonismo pela criações de atmosferas e ambientes que permitem que os seus colegas pintem sobre a paisagem por si criada.

São seis as faixas que constituem Through Eons to Now. No tema de abertura, “Rapidly Changing Contexts”, começamos por escutar um monólogo de Resnik – acompanhado, em plano de fundo, pelos outros dois elementos -, que, aos poucos, se vai entrelaçando com o tocar de Maier até se tornar mesmo num diálogo em consonância, que, logo depois, se separar novamente, desta vez em dois monólogos independentes mas paralelos. Nesta história de encontros e desencontros, Giust produz desde pontuais e espaçados sons metálicos e lancinantes, a tempestuosas divagações pelos elementos secos da bateria, esporadicamente humidificados por certas batidas nos pratos de choque. “A Wrong Way to Be Right” vê Maier assumir a dianteira de arco na mão, sendo este tema também confirmação de que o papel de Giust transcende o de pura manutenção do rigor rítmico do trio. Aliás, são, inclusive, mais frequentes os momentos em que o percussionista se desprende desta “obrigação” metronómica para se tornar num elemento activo do diálogo, comunicando através do timbre de cada um dos elementos percussivos do seu kit. Além disso, Resnik mantém um registo semelhante ao do tema anterior, quente e assertivo, quase sempre melódico, talvez ligeiramente mais experimental nalguns segmentos. “Practice of a Principle” assenta no mesmo domínio das faixas anteriores: é um tema frio, no qual as texturas e diatribes de Giust e Maier são contrapostas por um ordenado e comunicativo Resnik. “Watching Under The Carpet” remete-nos para geografias misteriosas, mas calmantes: Maier aborda o violencelo de forma interessante, fazendo-o soar a contrabaixo; já o fraseado de Resnik é íntimo, atingindo-nos com a proximidade de quem nos comunica algo ao ouvido. Em “Consequences of a Doubt” somos consumidos pelas texturas de Giust (que explora colarações graves, surrealistas) e experimentações de Maier, sendo que juntos embarcam numa jornada sinistra, quase distópica, visitando lugares desconcertantes e pouco familiares. Como sempre, muita da coerência é imposta por Resnik, com um fraseado mais próximo de algo que já possamos ter ouvido num outro passado do que os outros dois músicos. Por fim, para terminar o álbum, “End of a Western Criteria”. E, se havíamos, até aqui, colocado Resnik (maioritariamente) no plano da consonância melódica, ora que o saxofonista se liberta do cânone mais tradicional para se entregar, por fim, a topologias não-idiomáticas, conseguindo, deste modo, aliar-se de forma homogénea à percussão e ao violoncelo. Apesar desta predominante homogenia, sente-se alguma relutância por parte do saxofonista em abandonar por completo a abordagem anterior. Assim o tema desenvolve-se nesta luta entre o conforto e a aventura, nunca se estabelecendo totalmente em nenhum dos dois lados – um excelente exemplo dos regimes transitórios que o trio vai explorando ao longo do disco.

Through Eons to Now é um disco que se distingue pela quase subversiva obstinação de Resnik de não se entregar à experimentação pura, característica que dá a este álbum um toque especial, tornando-o num excelente híbrido que explora quer paisagens mapeadas quer regiões intransponíveis. As prestações de Giust e Maier são igualmente meritórias e de considerar, bastante mais exploratórias e idiomaticamente desprendidas, formando um rebuscado e bem conseguido tecido experimental. Transportando-nos da imensurável eternidade até ao presente, eis um disco que cai que nem uma luva nesta época outonal.

Jars – Henry Marić, Boris Janje, Stefano Giust

Os Jars são um trio com raízes em Itália, Croácia e Eslovénia, focado em música livremente improvisada e em free jazz, formado por Henry Marić no clarinete baixo, clarinete e guitarra eléctrica, Boris Janje no contrabaixo, e Stefano Giust na percussão. Este é, portanto, à semelhança dos Ombak Trio, mais um projecto em que o prolífico percussionista Stefano Giust se junta a dois outros músicos para explorar música não convencional, respeitando assim a tradição da editora Setola di Maiale de se aventurar por “investigações na música experimental e improvisada”. E muito bem que o tem feito – verdade seja dita -, dado que desde 1993, ano de criação desta chancela italiana, já editou mais de quatro centenas de álbuns – um número espantoso e inquestionavelmente respeitável!

A música deste álbum de estreia dos Jars é de difícil definição no que toca a forma, mas porventura mais fácil de definir em termos de conteúdo. A primeira escapa-nos, muitas vezes, por entre os dedos das mãos, qual água líquida que tentamos, de modo infortuito, agarrar para compreender. Afinal, estamos perante material amorfo, altamente abstracto, fruto de improvisação livre e espontânea. Porventura uma excepção a esta apreciação seja o quinto tema – “Slon živaca” -, no qual se escuta o trio a embarcar num explícito 4/4 – definido por Giust e marcado nos tempos fortes por Janje -, que se pode considerar um tema de estrutura tradicional: um motivo é apresentando, ocorrem variações sobre o mesmo, atinge-se um clímax, e, por fim, regressa-se ao tema inicial. Tudo o resto é amorfo, com o trio a dedicar-se maioritariamente à criação de paisagens e imagens opacas, assim como à representação sonora de pensamentos e sensações. Por outro lado, em relação ao conteúdo, serão talvez mais evidentes algumas das intenções do grupo. Em “Oped mravi”, “Jazzavac u kuhinji”, “Avtobus” ou “Pijeta”, o grupo apresenta-se com Marić no clarinete, configuração que tende a levar o trio a explorar territórios mais próximos do free jazz, mantendo alguma coerência melódica e entrosamento harmónico. Marić é um clarinetista de grande profundidade e que recorre amiúde a notas longas que criam uma atmosfera arrastada e contemplativa. Já Janje possui um fraseado atómico, preferindo o staccato ao legato, quase sempre tocando o contrabaixo com os dedos, usando o arco apenas para específicas intervenções (ouça-se, por exemplo, “Mačkaste kocke” ou “Stara Kuina”). Por fim, Giust é uma percussionista altamente versátil e expressivo, sempre presente, e que possui a extraordinária habilidade de ser imensamente comunicativo sem que, apesar disso, se torne intrusivo. De notar, também, que a verdadeira abstracção do concreto ocorre quando Marić troca o clarinete pela guitarra – como, por exemplo, acontece em “Mackaste kocke” -, transição que propulsiona o trio a divagar por paisagens indefinidas e cabalmente experimentais. “Okleto” é uma outra dessas instâncias, este que é um tema que investiga a disrupção do silêncio através de um jogo calculista, no qual sucessivas intervenções dos músicos destroem por instantes a serenidade da ausência de sons.

Como a física de Albert Einstein e a escrita de Antonin Artaud serviram de inspiração à bonita arte apresentada na capa do disco, caracterizemos este disco como um método anárquico de exploração sónica… científico ou não, é bem bonito de se ouvir.