Vento é o ultimo disco da autoria do trio formado por José Lencastre (saxofone alto), Hernâni Faustino (contrabaixo) e Vasco Furtado (bateria). Esta álbum marca a estreia do selo Phonogram Unit, um projecto editorial recentemente apresentado por Lencastre em entrevista ao Beats for Peeps. Em Vento, o trio apresenta uma sessão de improvisação gravada há cerca de 2 anos (o momento foi registado a 28 de Novembro de 2018), constituída por seis temas que oscilam entre o free jazz e a improvisação não-idiomática – no sentido definido por Derek Bailey – que não deixam margem para dúvidas: estamos perante vento fresco e original, criativo e não-conformado, desatento a tendências e padronizações.
“Here We Go” inicia o álbum com uma viagem de cerca de 12 minutos, onde Faustino aborda a peça de forma quase cromática, tanto em congruência com a tonalidade das (por vezes) inteligíveis melodias de Lencastre, como assumindo-se libertino, alheio a escalas ou restrições tonais. Furtado pouco mais precisa do que de um prato e de uma tarola seca para acompanhar com precisão e sagacidade os seus companheiros, encontrando-se em perfeita simbiose com o baixo andante de Faustino, permitindo, assim, que Lencastre construa sobre esta paisagem. Em “Abstração”, Lencastre farfalha, produz multifonias e toca o saxofone de forma gutural; Faustino, ora opta pelo pizzicato, ora troca os dedos pelo arco; Furtado modela texturas, contextualizando o ambiente cénico que se experiencia – um tema apropriado para a banda-sonora de um thriller tenso e sufocante. “Test Drive” leva-nos a dar mais uma volta pelo domínio free jazz do trio, apresentando uma energia semelhante àquela que é imposta em “Here We Go” – são 13 minutos de interessantíssima improvisação, com o duo Faustino-Furtado a revelar o seu lado mais frenético e inquieto, e com Lencastre a embarcar num cíclico processo de criação e destruição no qual laivos de melodias se esfumam dando lugar a frases amorfas e atonais. “Keep Going” inicia-se com Lencastre a impor uma intensidade semi-Brotzmanniana que, porém, se dissolve para dar lugar a espaçados, mas ritmados ataques do trio, que nos embala num balanço quasi-groovy, ganhando, assim, momentum para um final declarativo. Em “Ruínas” somos submersos num universo distópico e pós-apocalíptico em que o trio, primeiro, integra a experiência; depois, junta as peças dispersas do caos onde se encontra; e, por fim, acaba com a consciência e vitalidade de uma atitude reconstrutiva. “Vento” remata o disco, partindo de um registo experimental – à semelhança do apresentado em “Abstração” – que é habilmente metamorfoseado num uptempo e explosivo final.
Vento é um belo registo de um trio experiente que consegue impor dinâmica e, sobretudo, comunicar de forma efectiva ao longo de todo o álbum. Isto porque, apesar da experimentação ter um inegável valor intrínseco, é igualmente indiscutível que a informação nela contida é, amiúde, indecifrável para o ouvinte. Assim sendo, nada melhor que experimentar numa estrutura que permita dialogar e discutir com o outro lado, algo que é aqui logrado de forma fantástica. No entanto, dita ordem não é imposta através de uma lógica formal em termos de conteúdo, mas, sim, de uma matriz longitudinal que é ubíqua em todo o álbum: apesar de muito provavelmente não ter sido algo definido a priori, sentimos que várias são as faixas que têm um princípio, um meio e um fim, sinónimo de um pensamento, intenção e entrosamento entre o trio que são uma maravilha de se experienciarem. É obvio que mais do que como começa, o importante é como acaba, mas a este respeito o trio é suficientemente traquejado para saber quando parar uma improvisação e, consequentemente, veicular com eficácia o que tinha para expressar, poupando-se, assim, a redundâncias ou tautologias. Indubitavelmente do melhor que anda por aí na experimentação portuguesa.