Samuel Goff – Transmissions

Os melhores álbuns são aqueles que não são herméticos: ao não colapsarem num universo unidimensional e ao assumirem-se maiores do que a música que neles está codificada ganham, inevitavelmente, vida própria, tornando-se, portanto, objectos vivos, pedaços de história e de cultura perenemente registados num suporte físico ou digital. Estes são os álbuns dos quais sentimos que se pode extrair algum tipo de significado que transcende a sua dimensão puramente musical, quase como se a experiência de vida neles criptografada nos fosse, aquando da sua audição, transmitida através da modulação de ondas sonoras que transportam informação vital. É exactamente esse o caso de Transmissions, o primeiro álbum a solo do percussionista, escritor, compositor e improvisador Samuel Goff, membro do duo de noise-rock Among The Rocks And Roots e fundador do colectivo de improvisação RAIC.
Goff surpreende-nos em Transmissions – um álbum produzido ao longo de mais de um ano juntamente com Richard Schellenberg – pela audácia e ousadia com que nos conta a sua história: ao longo de sete composições, transmite-nos a sua mundividência, experiência de vida e influências artísticas através de passeios pelo profundo da Bolívia, recuos no tempo até às minas de carvão do Kentucky nos anos 50, viagens espaciais em direcção ao profundo e frio isolamento do universo, assim como através referências à dupla Tarkovski-Artemiev. Em termos de produção, é notória a manipulação cuidada da estereofonia – é, portanto, aconselhável a utilização de auscultadores -, o uso de samples é frequente e ubíquo, e as gravações de campo feitas pelo músico são largamente usadas como fonte de texturas e paisagens sónicas. Deste modo, Transmissions, como o leitor poderá já ter deduzido, não é um álbum de fácil classificação: o ecleticismo da sua sonoridade coloca-nos à procura de respostas num domínio formado por géneros como o noise, a world music, o industrial, o minimalismo, as divagações drone, ou a musique concrète. No entanto, apesar de sentirmos que o terreno que se encontra a ser explorado nem sempre é inteligível e que, amiúde, nos movimentamos em direcção ao desconhecido, igualmente percebemos que a viagem é de uma riqueza inquestionável. Afinal, o que conta é o percurso e não o destino final, certo?
Transmissions inicia-se com “Pikeville”, uma justaposição e sobreposição de vários samples e gravações de campo que fazem com que esta faixa, pictoricamente, possa ser comparada a uma colagem. A heterodoxia das transições entre os vários segmentos faz com que o tema adquira um carácter onírico, como que de um sinistro e misterioso sonho se tratasse no qual os domínios da realidade e da ficção se misturam para formar um universo único e pessoal. As vozes de blues que se ouvem de fundo, reiteradas até à exaustão, referenciam, provavelmente, o repetitivo trabalho dos mineiros de carvão; os momentos de cacofonia relembram-nos o sofrimento inerente à existência. Em “Transmissions, Part One” – um tema dedicado a Eduard Artemiev e Andrei Tarkovsky – somos submersos numa atmosfera futurista e espacial onde ruídos de interferências se mesclam com sombrias granularidades. Facilmente se imagina este tema num filme de Tarkovsky, com Solaris a ser aquele que talvez, imediatamente, nos vem primeiro à cabeça. “Snakebite” explora – através do uso de instrumentos de percussão, principalmente asiáticos – polirritmias típicas da áfrica subsariana, estimulando a navegação pelas músicas do mundo. “Cochabamba” conduz-nos numa viagem pela Bolívia das memórias de Goff – o carácter pessoal do tema é claro, com vários samples e gravações de campo a surgirem sequencialmente ao longo da faixa, modulando o fluxo de consciência e o acto de relembrar. Como o título prontamente indica, “The Industrial Revolution” – uma referência de Goff à segunda revolução industrial – é um tema industrial: ouve-se maquinaria pesada, afiam-se lâminas, visita-se o grindcore. “Sunrise” é meditativo e etéreo, simbolizando o presságio do desconhecido. Por fim, o álbum termina com “Transmissions, Part Two”, uma sequela de “Transmissions, Part One” que, apesar de seguir a mesma linha em termos de forma, sonda conteúdo diferente, com os samples que aludem ao horror das práticas católicas de exorcismo na Colômbia a serem os mais desconcertantes.
De um modo desconformado, original, heterodoxo e disruptivo, Goff estabelece-se como um criador portador de um rico e complexo universo criativo, apresentando em Transmissions um disco profundamente pessoal, mas de uma fascinante e eclética estética sonora. Apesar da ausência de melodia e o carácter experimental do disco poderem afastar ouvintes menos pacientes, este é um álbum que agradará, certamente, a ouvidos exigentes e sedentos de inovação. Altamente recomendado, portanto. A senda da Cacophonous Revival Recordings – que aqui se juntou à a editora de música experimental da Pennsylvania Orb Tapes – não poderia ter começado de melhor forma.
Patrick Shiroishi & Dylan Fujioka – Neba Neba

E se o primeiro lançamento da Cacophonous Revival é uma eclética catarse pessoal, o segundo é um álbum de free jazz puro e duro da autoria do duo formado por Patrick Shiroishi (saxofone alto e barítono) e Dylan Fujioka (bateria e percussão). Shiroishi e Fujioka são ambos residentes em Los Angels, tendo já colaborado em vários projectos dos quais se podem destacar os álbuns Borasi (Astral Spirits, 2019) e Kage Cometa (FMR Records, 2018). Deste modo, e apesar da próxima e estreita relação musical entre ambos, Shiroishi e Fujioka nunca tinham, até este Neba Neba, gravado um disco onde se apresentavam como duo, formato colaborativo em que aqui se consagram de forma muito interessante e reveladora de um notável entrosamento e poder criativo refinado.
“Lucky Boy” é um tema que se estende ao longo de quase 26 minutos e no qual o duo se apresenta com calma, serenidade e, até mesmo, coerência melódica. Esta atitude inicial é abruptamente abandonada, em primeira instância, a favor de uma abordagem mais fervorosa e enérgica, que, por sua vez, gera o ímpeto que leva o duo a explorar territórios mais experimentais, com Shiroshi a divagar pelo cromatismo e atonalidade, e com Fujioka a responder às intervenções do saxofonista com perspicácia e explosividade. A esta exibição inicial de pujança e intensidade, segue-se um longo interlúdio onde Shiroshi opta por uma presença altamente discreta, chegando as suas intervenções a confundirem-se com o ruído de fundo ou o silêncio; já Fujioka pontualiza a composição com intervenções que variam em dinâmica, velocidade e agressividade e que acabam por degenerar num solo do baterista. Este momento individual é o gatilho que reinicia o ciclo: o apaziguamento que o interlúdio trouxe repõem a ordem inicial que, gradualmente, aumenta em entropia, acabando por se traduzir, novamente, em caos e cacofonia. Escuta-se um outro solo de Fujioka do qual Shiroishi apanha boleia para comunicar, agora, de forma feroz e pragmática. Tal é a dominância e assertividade do saxofonista neste segmento que acaba por ganhar o espaço necessário para a sua intervenção a solo. Por fim, após breves momentos de profunda introspecção espiritual, o duo remata o tema em modo de espiral cacofónica.
“Stray Dog” contrasta a atmosfera frenética na qual o tema anterior termina com texturas cintilantes – originadas, maioritariamente, pelo carrilhão de que Fujioka faz uso – e um discreto saxofone que gradualmente aparece em cena e aumenta em estridência. “Chorizo”, à semelhança de “Lucky Boy”, é, também ele, outro longo tema, desta feita com pouco mais de 29 minutos. No entanto, em oposição à caoticidade transversal ao tema de abertura, é uma faixa muito mais ponderada e espaçada, dando abertura para que o ouvinte a absorva e aprecie, com o silêncio a chegar a ser usado como um terceiro elemento do grupo. Fujioka pouco recorre aos pratos do seu kit, favorecendo a exploração dos timbalões e da tarola como forma de expressão da sua musicalidade. Já Shiroishi – que tanto toca o saxofone alto como o barítono – ora farfalha, ora recorre à multifonia para digitar as suas melodias, aqui bastante inteligíveis e, até mesmo, de uma sensibilidade tocante e com laivos de misticismo. Para finalizar Neba Neba, o duo regressa, novamente, à sua abordagem explosiva, coroando, assim, esta que é uma excelente amostra do seu potencial.
Em Neba Neba, Shiroishi e Fujioka dançam o tango – ou melhor, o free jazz – de forma audaciosa e corajosa, apresentando um álbum em que momentos de coerência rítmica e melódica degeneram em devaneios cromáticos, atonais e texturais. O duo não precisa de harmonias dissonantes ou arranjos complexos para tornar a sua música atractiva: uma bateria e um saxofone são o que basta para se expressarem e darem origem a um trabalho cru, brutal, eloquente e directo. Outra excelente adição ao catálogo da Cacophonous Revival/Orb Tapes.